sábado, 29 de dezembro de 2007

Reprise - Parte 2 de 3

2ª PARTE

Quando acordei, fogos de artifício iluminavam o céu e transformavam a noite em dia. Será que era ano novo? Eu acho que bebi demais. Como toda noite de ano novo em São Paulo, chovia, e muito; não me incomodei. Este ano não podia ver os fogos de artifício, por alguma razão sentia que havia algo errado, me incomodei.

Não me lembro de ter bebido nada, pior, não me recordo de nada que tenha ocorrido no ano que se passou; sinto como se um ano inteiro tivesse passado sem q eu o tivesse vivido.

Porém, o que eu sou permanece imutável e a irritação irradiava de cada entranha do meu corpo por estar onde estava sem saber de nada. A triste verdade é que sou e fui durante toda minha vida excessivamente irascível; qualquer coisa fora do lugar me deixa louco; as pessoas me tiram do sério.

Não sei se é culpa da genética ou exclusivamente minha, mas sou uma bomba relógio.

Gostaria de lembrar se bebi, para ao menos saber se ficarei de ressaca. Sei que não queria ver o festival de fogos de artifício por muito tempo, meu estado me irritava; pensei em me arrastar para um lugar tranqüilo, inabitado, sem saber se de fato há tal lugar.

O que tornava tudo mais ridículo é que fazia planos de fuga mas não fazia questão de saber onde estava. Sei que para seguir em frente era obrigado a dar meia volta e andar para trás, estava num beco. Era um daqueles becos utilizados como depósitos de lixo e entulho. A chuva e o clima frio contribuíam para o odor proliferar e impregnar minhas roupas, meu cabelo, meu corpo.

Me ergui, fraco e zonzo, sentindo que já havia passado por tudo isso antes. Me apoiei nas paredes úmidas pela chuva, e andei com passos telegrafados, como se já tivesse andado daquela forma antes.

Instintivamente já sabendo o caminho que deveria tomar, me arrastei até uma avenida qualquer, me joguei dentro de um taxi assaz familiar. Senti que já conhecia o taxista de algum lugar; esperei um instante para ver se este diria algo, mas permaneceu silente, aguardando que dissesse para onde queria ir. Pedi para me deixar em algum lugar que não consigo lembrar. O motorista dirigia tranquilamente e não tirava os olhos do espelho; sabendo que a chuva formava uma cortina que impossibilitava a vista do lado de fora, assim nem tentei ver o que havia do outro lado da janela. Embora tivesse passado minha mão nos vidros para tentar impedir que embassassem, sem sucesso: meu destino permanecia uma incógnita.

Como de costume, me irritei com a situação. Sem pestanejar disse ao motorista num tom elevado de voz: para aonde está me levando? Por que a demora?

Contudo, agindo como se não tivesse dito nada retrucou:

- O senhor parece estar cansado, porque não descansa um pouco?

Assim que terminou a frase fui acometido por uma dor de cabeça incrível, senti que não era a primeira vez que passava por isso e antes que pudesse formular qualquer frase, desmaiei.

Acordei em meu apartamento, largado em minha cama com a mesma roupa, estava ensopado. Não fazia idéia como havia parado lá. O barulho da explosão dos fogos de artifício foi substituído por choros estridentes, incontroláveis. Não me lembro de ter bebido, mas a dor de cabeça que sentia indicava que fora algo muito forte. Dirigi-me à sala de estar, vi meus familiares e amigos reunidos.

Minha irmã chorava, meus primos, tias, amigos e amigas se abraçavam. Esta cena me é familiar. Estavam todos vestidos de preto, senti que não me notavam. Não conseguia os identificar, por mais que tentasse não conseguia distinguir os rostos, os detalhes das roupas que usavam, pareciam vultos.

Meu coração disparou; será que estou morto? Quando, já muito irritado, pensei em gritar algo, uma de minhas tias se dirigiu a mim, um tanto pálida e disse: “Nós sentimos muito, meu querido. Sentimos tanto!” abraçou-me com tamanha força que achei que quebraria ao meio.

Assim que minha tia me largou, me veio à mente a cena de minha irmã se dirigindo atônita em minha direção, chorando, dizendo que meu irmão morreu. Antes que saísse do transe momentâneo que havia naufragado, minha irmã se aproximou, tocou meu braço com sua mão pálida e disse: “Marcos, o Marcolito, faleceu”.

Pôs-se a chorar incontrolavelmente, e com muito esforço prosseguiu: “Foi um acidente de carro, horrível”, me abraçou.

Ouvi a notícia, que me atingiu como um soco no estômago, por alguma razão já sabia que ela diria isso. Previa seus movimentos, suas palavras, tudo.

Pus-me a chorar. Me desesperei e me separei da minha irmã de uma forma violenta; esta quase caiu no chão, tamanha força que usei para me soltar de seus braços. Onde eu estava quando isto aconteceu? Onde eu estava? Por que não fui chamado para reconhecer o corpo? Provavelmente estava bêbado, trabalhando ou ocupado demais com qualquer inutilidade. E agora?

Marcos era meu irmão e pai e agora se foi.

Esmurrei a parede, corri para o meu quarto, peguei o casaco, as chaves e saí como uma flecha de casa.

Segui um caminho completamente desconhecido. Encontrei um bar muito familiar, entrei, pedi alguma bebida. Todos os movimentos foram por mim reconhecidos. Os olhares trocados, os bêbados estavam jogados exatamente onde eu imaginei que estariam; por sinal, parecia que estavam jogados, imóveis, no mesmo lugar há anos.

Depois de ter me embebedado, segui cambaleando por alguma rua que não conheço, ouvi alguém gritando meu nome, pensei: “O que este Jorge quer de mim?” Me flagrei imaginando como sabia que era de fato Jorge que me chamava. Temi olhar para trás e quando olhei, lá estava ele, Jorge.

“Meu Deus, o que aconteceu com você? Você está um caco!” Não consegui assimilar o que ele me disse, a bebida fazia tamanho efeito em mim que me vi em queda livre em direção ao corpo de Jorge, que num único violento arremessou meu corpo para trás.

Desatei a rir. Sabia exatamente o que iria acontecer, e com um sorriso enorme no rosto caí no chão. Jorge me olhou e disse num tom reprovador: “O que diabos você está pensando? Lhe dou mais três dias para sair do apartamento. Nem um a mais nem um a menos.”

Enquanto ele se afastava perguntei: “Não vai cuspir na minha cara e chancelar a intimação de despejo?” Não conseguia conter o riso.

De repente, um temor incontido, uma tremedeira tomara conta de mim. Me enfureci, fiquei completamente descontrolado, tentei levantar a todo custo, mas a bebida atuava com tamanha força em mim que para me levantar, fui obrigado a ficar de joelhos e me apoiar num carro que estava estacionado. “Meu Deus! E agora? Para onde vou? Nunca paguei um dia sequer de aluguel!” Chorei de pânico.

O pior de tudo é que não tinha dinheiro, minha vida parou há alguns dias, achei que esqueceria este dia, mas não, ficou tatuado na minha alma, escrito em cada canto do meu quarto, me consumiu. Não conseguia parar de tremer e chorar.

Faria de tudo para não me lembrar daquele dia, mas é a única coisa que consigo lembrar claramente. O momento que entrei pela porta, joguei o paletó no sofá; vi que tinha uma mensagem em minha secretária eletrônica.

Lembro-me da voz dela; suave, doce, neste momento, especialmente chorosa: Não agüentava meus surtos de irritação, impaciência, não me agüentava mais. Não me queria mais.

“Me desculpa, não posso mais. Não me procure mais”. Foi assim que a mensagem terminou. Como que por instinto arranquei a fita da secretária com toda violência que me é natural, arremessei inúmeras vezes a fita na parede; ficou intacta, não quebrava, não estraçalhava, não sumia.

Completamente inebriado pela cólera percebi que se a fita não explodia, não destruía, concluí que se alguém deveria sumir, esse alguém seria eu.

Este é o último instante que tenho claro em minha mente, está tatuado e tenho certeza que não apagará tão cedo.

Já é noite. Não sei que dia do ano novo estou vivendo; acho que quero ir para casa, mas que casa?

Estava a caminho, não via a hora de deitar em minha cama e dormir um dia inteiro, uma semana, um mês. Quanto mais eu andava, menos conhecidos os lugares se demonstravam. Tenho impressão que a rua aparecia na medida em que eu andava, como se não houvesse nada a minha frente e a cada passo que eu desse uma casa, um prédio, uma loja, um bar, surgisse do nada.

Comecei a tremer incontrolavelmente, parei no meio da rua, que estava deserta, tentando ver o que havia há 4 passos à minha frente. Não estava bêbado, não estava zonzo. Juro que não havia nada.

Quando finalmente tomei coragem para seguir em frente, me convencendo que tudo era fruto de minha imaginação, ouvi um assovio distante, como se fosse um trem se aproximando. Pude ouvir claramente o barulho deste trem; o assovio se repetiu.

Apertei os olhos, tentando ver algo ao meu redor, não consegui distinguir se era de minha cabeça que vinha o barulho estridente, o maldito assovio. Quando olhei para frente não tive tempo de respirar, de piscar, de mover um fio de cabelo. Era o trem.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Neve de Ano Novo - Parte 1

-13:45

Dezembro deveria ser verão no Brasil, mas São Paulo tem sua tradicional contradição climática, frio e chuva pareciam fazer do final de ano algo monótono e depressivo, especialmente para quem passa solitário.

Na sacada da cobertura da casa de meu amigo de infância conversávamos. Como de costume eu ia almoçar todo ultimo dia do ano em seu apartamento ao lado de sua esposa e filho e, ao terminar, conversávamos e eu fumava um cigarro.

Discutíamos as memórias do ano, boas e ruins, mas curiosamente, como de costume humano, lembrávamos mais de momentos ruins do que bons. É estranho como os relatos bons e felizes passam rápido nessas discussões, enquanto as coisas ruins pareciam ter um ar de caso importante e nós éramos juizes discutindo como se discute o futuro de um filho.

Não sentia inveja de seu status, pelo contrario, estava muito feliz por ele ser um dos advogados mais famosos da cidade e, acredite ou não, honesto. Sua esposa era amável, e ao contrario daqueles que tem fama, eram fieis e felizes; algo raro nos dias tão caóticos de hoje.

“E o que pretende fazer hoje?”, pergunta ele sentado em sua poltrona na sacada que facilmente acomodaria meu apartamento inteiro.

“Nada.”

“Como assim nada? Vai passar o ano novo sozinho de novo?”

Fazia alguns anos que eu olhava os fogos de artifício que celebravam o ano novo pela janela da minha sala. Do meu prédio quase vazio devido às viagens de todos para casas de parentes, ouvia-se alguns gritos de comemoração abafados pelos sons das explosões que celebravam o inicio de um novo ano. “Sim, provavelmente.”

“Eu já sei a resposta, mas nunca vou cansar de perguntar e insistir: Por que você não passa o ano novo conosco?”

Solto um suspiro, todo final de ano e natal me convidavam para ficar com eles, mas me sentiria um intruso em meio a tanta alegria de sua família. Minha felicidade mórbida e meu espírito nefasto não se acomodariam com um lugar tão amistoso e confortante com o ar familiar. “Você me conhece. Vou dar-lhe sempre a mesma resposta, meu amigo. Eu não celebro essas datas, nenhuma delas na verdade.”

Terminada a conversa e após alguns cigarros me coloco na entrada pronto para sair, mas sou parado como de costume nessa data para ser presenteado com um fino champanhe.

“Adeus, meu amigo. Feliz ano novo.”, digo-lhe.

“Até o ano que vem! Feliz ano novo, meu amigo!”, ele me responde e a porta se fecha.

-15:00

As ruas já começavam a ficar desertas. Pude ver os hospitais em ritmo de descanso, os bombeiros sentados na entrada conversando e alguns se despedindo ao ir para casa, os policiais fazendo suas rondas com um olhar que os fazia parecer pensar em suas famílias em suas casas que passariam o ano novo sozinhos, e os bares com as almas solitárias que pelo menos nessa data poderiam dividir sua solidão com muita bebida e lamurias.

Estava sem rumo, não queria voltar para casa ainda; não havia motivos o suficientes, sentir o cheiro de umidade e mofo saindo das mobílias velhas do meu apartamento. A poeira que se acumulava pelo chão e poucos móveis que tinha. A única coisa que me agradava naquele lugar era o cheio de papel velho, o cheiro do conhecimento, meus livros que ocupavam toda a casa, quem nunca a visitou antes pensaria estar em um cômodo de um velho sebo e isso me agradava.

Passei por becos, avenidas que começavam a perder o movimento, ruas estreitas e dei até voltas no mesmo quarteirão por mais de uma vez. Parei em um bar com algumas pessoas ainda sendo atendidas, provavelmente iriam fechar em breve, mas eu podia pegar algo. Optei por um café e um salgado.

Estávamos todos sós, ninguém no bar estava acompanhado, bebiam em silencio talvez fazendo o mesmo que fiz com meu amigo nesta manhã: uma retrospectiva dos acontecimentos do ano, mas diferente de minha situação, eles não deviam ter ninguém com quem compartilhar suas lembranças neste fim de ano. Não conseguia imaginar como seria uma solidão maior do que a que eu vivia, por este motivo não pude deixar de me espantar com a bravura daqueles seres tão insólitos como os que compartilhavam o recinto comigo.

O sobre-tudo encharcado da chuva pingava, eu não me dei o trabalho de tirá-lo antes de sentar, o vento frio que vinha da entrada passava por ele e a água esfriava de modo que me fazia tremer a cada instante. Ninguém reparou na minha chegada, todos continuavam com olhares vazios em seus devaneios, o único ser que eu podia confirmar estar vivo, não era eu, mas sim o garçom, um senhor de idade que vestia camisa vermelha e estava sentado atrás do balcão.

Felizmente o salgado não estava ruim e o café estava forte, da maneira que gosto, e o lugar não era sujo, apesar de neste dia em especial o clima depressivo era inevitável, nuvens escuras cobriam o céu, as ruas desertas, a chuva mais fraca caia monótona e somente algumas luzes acesas no bar.

“Deseja mais algo?”, perguntou o garçom assim que viu que havia terminado o meu salgado.

“Não obrigado.”

Ele então recolhe a cestinha em que estava o salgado e com ela em mão olha para a rua. “Tempo ruim para um final de ano, não acha?”

“Sim, mas é costume fazer esse tempo no final de ano, pelo menos em São Paulo.”

“Talvez...”, e olhou por um longo tempo a cestinha vazia em sua mão. “Mas este ano é diferente. Não sei te explicar, mas acho que a natureza está mais sozinha.”

“Sozinha?”, perguntei acendendo um cigarro e olhando para ele. “A natureza deve estar é irada com agente. Destruímos ela inteira, não me espantaria se ela estivesse com raiva e quisesse acabar com tudo.”

“Concordo, mas a raiva que não se cura, não se torna solidão? E a solidão não se torna depressão?”, disse já a caminho de volta para o balcão.

Senhor interessante, de certa forma ele tinha razão, eu conseguia concordar com isso, mas não penso que a natureza se sentia solitária, talvez depois que ela aniquilasse todos os seres vivos ela se sentisse solitária, no entanto para chegar a isso ela tem que nos destruir, e isso acredito seja um processo em andamento.

Com o avanço da tecnologia temos mais conforto, e nós como seres vivos regredimos já que não precisamos de nossas funções básicas, temos outros fazendo por nós. Engraçado como várias pessoas querem que nos sensibilizemos com a situação da natureza, mas nenhum deles está disposto a morar em ocas e viver da terra como os índios em troca da tecnologia que eles possuem.

-20:00

Ainda estava claro para o horário apesar das nuvens escuras cobrirem o céu. A chuva tinha cessado e agora uma fina e gélida garoa tomava seu lugar.

Parando em frente ao apartamento em que morava, apago o meu cigarro e olho uma ultima vez a rua deserta. Nesta hora a maioria das pessoas já estavam reunidas com seus familiares e provavelmente estariam conversando e rindo. Pensei em meu amigo em sua cobertura, dentro de sua casa quente e aconchegante. Agora estaria sentado abraçado em sua esposa, seu filhos brincando perto da arvore de natal ansioso para abrir os presentes. Todos felizes, sentindo o calor dos sentimentos de afeto entre eles, aqueles sentimentos que as famílias costumam ter em momentos de verdadeira alegria, pelo menos era o que imaginava.

Conseguia visualizá-lo na sua sala, os dois no sofá, a mesa em frente e a janela para sacada a esquerda deles. Conseguia sentir o cheiro e aconchego do lar, mesmo não estando lá. Seria um intruso, mas devo confessar que naquele momento senti uma enorme vontade de poder compartilhar com eles todo aquele êxtase de felicidade, no entanto sabia que não podia, ou melhor, não devia por causa de quem sou, do que penso e no que me tornei: amargo, depressivo e paranóico; pelo menos era isso o que achava.

Não havia um apartamento na cobertura no prédio em que eu morava, o acesso a parte de cima era uma pequena escada de incêndio onde alguns jovens se escondiam dos pais para fumar, por sorte em ano novo a maioria das pessoas estavam viajando e os jovens preferiam cair bêbados na casa de outros amigos do que ficar com os pais, essas crianças são o futuro do país. A entrada escura cheirava umidade e cloro do mais barato, as paredes descascando estavam cobertas por fungos e rachaduras, dentro do elevador era ainda pior, o forte cheiro de mofo que tinha faria qualquer um com alergia e asma terem uma morte imediata, por sorte eu tinha bronquite, então eu estava só a meio caminho da morte quando entrava nele.

Não me incomodei em passar pelo meu apartamento, subi direto, ao ultimo andar e peguei o acesso ao topo do prédio para apreciar um pouco o céu nefasto e depressivo de ano novo que fazia, também queria sentir a garoa gelada, já estava todo molhado mesmo uma pneumonia seguida de morte não seria nada mal para um começo de ano com um clima desses.

Ao abrir a porta, senti o vento de fora entrar com gotículas da garoa que fazia, era um ar renovado gelado, diferente ao abafado úmido de mofo que vinha das entranhas do prédio. Fiquei aliviado por um momento e caminhei até onde ficava a sacada, passando por cabos de antenas, bitucas de cigarro, camisinhas e outras coisas das quais eu não ousaria identificar; um chiqueiro seria um quarto 5 estrelas perto desse lugar. Saindo de trás de uma antena parabólica e vendo a proteção da sacada, o parapeito, que chegava à altura do meu estomago, tomo um susto com um grito de uma mulher.

“NÃO SE APROXIME!”



--Fim da Parte 1

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Reprise - Parte 1 de 3

Quando acordei os fogos já iluminavam o céu e transformavam a noite em dia. Já era ano novo. Eu, para variar, bebi demais. Como toda noite de ano novo em São Paulo, chovia, e muito; não me incomodei. Na verdade sempre me surpreendi pelo fato que, não obstante a chuva, os fogos de artifício ainda subiam, explodiam, ressoavam, afastavam os demônios antigos e traziam os novos ares.

Não lembrava porque havia ingerido tamanha quantia de álcool, sequer lembrava porque havia bebido.

A verdade é que sempre fui um sujeito muito irritado; qualquer palito fora do lugar me tira do sério, qualquer poeira no chão me deixa ensandecido e as pessoas, principalmente quando aglomeradas em um micro espaço, me deixam maluco.

Meu pai era italiano e minha mãe alemã, eu, o resultado desta mistura genética só poderia ser uma bomba relógio, são as leis da natureza.

Enfim, queria lembrar o que bebi, para dosar o tamanho da ressaca. Na condição em que me encontrava não agüentaria esse festival de fogos de artifício por muito tempo; fui obrigado a me arrastar para um lugar tranqüilo, inabitado, inexistente.

O que tornava tudo mais ridículo é que eu fazia planos de fuga para qualquer lugar, mas não sabia onde estava.

Com o pouco de força que me sobrou consegui me erguer, apoiando-me a todo instante nas paredes úmidas pela chuva, tentando com todas minhas forças manter o equilíbrio e não cair nas poças enormes que há pouco me serviram de colchão.

De pé, arrastei minha carcaça até uma avenida qualquer, me joguei dentro do taxi, disse para me deixar em qualquer lugar, que não consigo lembrar. Embora o motorista dirigisse tranquilamente e não tirasse os olhos do espelho, não quis conversar; não consigo lembrar do rosto do homem que muito calmamente me conduziu para um destino incerto, me preocupei.

A cortina formada pela chuva impedia que eu visse a rua, as pessoas, para onde ia; o ar quente de dentro do veículo embaçava as janelas não facilitando minha visão.

Lembro que me irritei com a demora para se chegar a algum lugar, quando ameacei vociferar algo para o motorista, este pareceu perceber meu intuito e se antecipou:

- O senhor parece estar cansado, porque não descansa um pouco?

Neste instante minha cabeça passou a doer; tudo começou a girar, parecia que os fogos de artifício explodiam impiedosos ao meu lado, tal era o volume das explosões.

Gostaria de poder precisar se neste foi neste exato instante que o carro parou, se havia pessoas na rua; por mais que tentasse evitar, desmaiei.

Acordei em meu apartamento, largado em minha cama com a mesma roupa, que ainda estava ensopada, sem saber como havia parado lá. O barulho da explosão dos fogos de artifício foram substituídos por choros estridentes, incontroláveis. Os efeitos da bebida já haviam cessado, estranhamente ainda estava atordoado, mas me dirigi à sala de estar, vi meus familiares e amigos reunidos.

Minha irmã chorava, meus primos, amigos e amigas se abraçando, se consolando. Estavam todos vestidos de preto. Eles não pareciam me notar. Não sei como os identifiquei, parecia que não eram os vidros do taxi que estavam embaçados pelo ar quente, mas sim meus olhos. Assim, instintivamente os defini como sendo minha irmã, primos e amigos.

Por um instante achei que havia morrido, entretanto, uma de minhas tias se dirigiu a mim, um tanto pálida e disse: “Nós sentimos muito, meu querido. Sentimos tanto!” abraçou-me com tamanha força que achei que quebraria ao meio.

Abracei-a, creio que notaram que não fazia idéia do que estava se passando e minha irmã se aproximou, tocou meu braço com sua mão pálida e disse: “Marcos, o Marcolito, faleceu.” Atou-se a chorar incontrolavelmente, e com muito esforço prosseguiu: “Foi um acidente de carro, horrível”. Ouvi a notícia, que me atingiu como um soco no estômago, minhas pernas começaram a tremer e desta vez sequer tentei me conter; desfaleci.

Marcos era meu irmão mais velho. Foi ele quem me ensinou a soltar pipa, olhar debaixo das saias das meninas, fumar, jogar bola. Foi meu pai e irmão. O fato de ter falecido desta súbita maneira, foi um choque muito grande.

O que mais me indignou fora o fato de sequer tê-lo visto, sequer ter reconhecido. Não fui capaz de ajudar minha irmã, minha família; certamente estava bêbado, estressado ou trabalhando demais. Jamais me perdoarei por isto.

Quando dei por mim novamente, levantei, peguei minha jaqueta, as chaves em cima da cômoda, passei como uma flecha pela sala e saí sem que desse tempo que alguém dissesse uma palavra.

Bebi algumas coisas em algum bar. Acordei em uma esquina desconhecida e comecei a caminhar.

Enquanto dançava pelas calçadas procurando qualquer lugar para ir, ouvi alguém gritando meu nome, estava tão tonto que o único lugar para que consegui olhar foi para cima, dando a impressão de que me chamavam do céu. Era Jorge.

“Meu Deus, o que aconteceu com você?” Como se não tivesse me dirigido a palavra, sorri e o abracei, mais para evitar uma queda direta ao chão do que por felicidade.

Fui imediatamente arremessado para trás, antes que caísse completamente desequilibrado no chão Jorge vociferou: “Você tem três dias para sair do apartamento. Não agüento mais. Três dias!” Achei que para chancelar a intimação sumária de meu despejo ele cuspiria em mim. Não tive esse prazer.

Pensei comigo: “E agora? Para onde vou? Faz tanto tempo assim que não pago meu aluguel?” Sinceramente, não lembro se cheguei a pagá-lo uma vez sequer.

Fui tomado pelo pânico.

Se tivesse algum centavo no bolso iria ao bar beber algo, mas fui obrigado a sentir a angústia e o medo corroendo meu estômago. Tremia.

O que seria de mim? Em minha cabeça restava apenas uma leve imagem do que havia se sucedido em minha sala de estar, optei por não me esforçar em lembrar tanto de meus dias passados.

Contudo, por mais esforçado que fosse, não consegui esquecer aquela mensagem deixada em minha secretária eletrônica; a voz dela um pouco trêmula, porém sem dúvida estava certa do que dizia. Não me suportava mais. Não agüentava meus surtos de irritação, impaciência, não me agüentava mais. Nem eu me agüento mais, o que poderia fazer.

“Me desculpa, não posso mais. Não me procure mais”. Foi assim que a mensagem terminou. Como que por instinto arranquei a fita da secretária com toda violência que me é natural, arremessei inúmeras vezes a fita na parede; ficou intacta, não quebrava, não estraçalhava, não sumia.

Este é o último instante que tenho claro em minha mente, está tatuado e tenho certeza que não apagará tão cedo.

Já é noite. Não sei que dia do ano novo estou vivendo; acho que quero ir para casa.

Estava a caminho de casa, não via a hora de deitar em minha cama e dormir um dia inteiro, uma semana, um mês. Quanto mais eu andava, menos conhecidos os lugares se demonstravam. Tenho impressão que a rua aparecia na medida em que eu andava, como se não houvesse nada a minha frente e a cada passo que eu desse uma casa, um prédio, uma loja, um bar, surgisse do nada.

Comecei a tremer incontrolavelmente, parei no meio da rua, que estava deserta, tentando ver o que havia há 4 passos à minha frente. Não estava bêbado, não estava zonzo. Juro que não havia nada.

Quando finalmente tomei coragem para seguir em frente me convencendo que tudo era fruto de minha imaginação, ouvi um assovio distante, como se fosse um trem se aproximando. Pude ouvir claramente o barulho deste trem; o assovio se repetiu.

Apertei os olhos, tentando ver algo ao meu redor, não consegui distinguir se era de minha cabeça que vinha o barulho estridente, o maldito assovio. Quando olhei para frente não tive tempo de respirar, de piscar, de mover um fio de cabelo. Era o trem.