segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

A Miopia e a Genética

- Assim está bom?

- Sim. Perfeito.

- E agora?

- Agora embaçou um pouco.

- Agora?

- Está bom.

Assim costumam se desenrolar minhas visitas ao oftalmologista. Continuo com olhos de lince míope: 4,0 e 4,5 no olho esquerdo e direito, respectivamente.

Enquanto o Dr. Miura preenchia as informações em seu computador, eu gastava meu tempo observando a paisagem de seu imenso consultório. Imaginava a função de tantos aparelhos e objetos, alguns pontudos até.

Para mim, ser oftalmologista é uma das profissões mais difíceis do mundo, quiçá da galáxia. É preciso deduzir, ter um feeling do paciente, quase um chute mesmo.

Imagine que, como de praxe, o Doutor peça para uma senhora sentar-se na cadeira situada no fundo do enorme consultório enquanto ele prepara o aparelho em seu rosto, ajeitando as lentes, o foco, as letrinhas iluminadas na parede em tamanho médio.

Então ele apaga a luz, faz um último ajuste no aparelho grudado no rosto da senhora e pergunta, já apontando para as letrinhas refletidas na parede:

- E então? Assim está bom?

- Sim. Não dói nada.

- Mas a Senhora consegue enxergar bem assim?

- Sim, consigo.

- A Senhora poderia ler para mim as letrinhas na parede?

- Que letrinhas?

- Aquelas refletidas na parede.

- Que parede?

Enfim, eu, com minha paciência de motorista paulistano, jamais conseguiria exercer o ofício de oftalmologista, nem por uma hora, nem para dilatar a pupila dos velinhos e crianças.

O Dr. Miura terminou de mexer no computador; anotou o grau de meus olhos em uma ficha, para que eu pudesse fazer meus novos óculos.

Quando já havia me levantado para sair, notei um porta-retrato com uma foto do Dr. Miura de shorts, óculos de mergulho, pé de pato, abraçado com uma mulher e três crianças em volta.

- São seus filhos?

- São sim.

- São bonitos. Puxaram à mãe né?

O Dr. Miura limitou-se a me conceder um sorriso de canto de lábio: o qual para os japoneses equivale a uma risada forçada ou educada que nós brasileiros tanto usamos.

- Mas enfim, pai é quem cria, não é mesmo? – Disse brincando enquanto esticava as mãos para cumprimentá-lo e me retirar.

- Não é não. – Respondeu o doutor me cumprimentado e sorrindo.

Acho que minha cara de espanto o obrigou a concluir o raciocínio.

- Embora possa parecer difícil de acreditar, na faculdade nós estudamos um pouco de psicologia. Aprendemos que: pai é quem gera a criança e não quem educa.

Larguei a mão do médico – oftalmologista é mesmo considerado médico? – Sequer tentei me defender da piada de mal gosto proferida por mim instantes atrás, balancei a cabeça levemente, como que processando a informação: não esperava tal resposta.

- O DNA marca a pessoa, como uma tatuagem. – prosseguiu entusiasmado o Doutor – Assim, a criança terá um vínculo eterno com o pai, o homem que a gerou.

Me sentei na cadeira de couro novamente, não tanto porque estava tão interessado no assunto, mas porque vi que o homem não iria parar a preleção tão cedo.

O Dr. Miura, com notável eloqüência, discorreu acerca da importância de se reconhecer aquele que deu início a tudo. Seja ele Deus, o pai, a pessoa que antes de você chegar ocupava seu cargo na empresa em que você trabalha, os portugueses que ocuparam o Brasil. Não importa se o resultado foi positivo ou negativo, mas aquele que nos antecede merece o mínimo de respeito.

Mesmo sentado em sua cadeira, o Doutor gesticulava e reiterava suas afirmações, dizia que o pai biológico é insubstituível e deve ser sempre respeitado; fazia inúmeras analogias para dissecar o assunto até este se esgotar em si mesmo.

Engraçado que de um momento para o outro aquele homem cujas únicas palavras tinha ouvido antes eram “E agora? Consegue enxergar?”, estava compartilhando seus conhecimentos de psicologia, metafísica e budismo.

Confesso que as palavras do Dr. Miura, me tocaram, senão não às colocaria, mesmo que de forma sintética e grosseira, nestas linhas tortas. Fiquei muito impressionado por ter o Dr. Miura falado ininterruptamente por trinta minutos, parando apenas para respirar: Primeiro porque não sabia que os japoneses davam discursos longos e segundo por confiar na minha capacidade de entendimento do assunto. Afinal, em momento algum fiz ou disse qualquer coisa que indicasse meu conhecimento acerca de qualquer tema.

Assim que ele terminou me levantei, cumprimentei-o novamente, evitei qualquer comentário que pudesse ocasionar um segundo round e saí. A sala de espera estava lotada. Creio que os que ali esperavam imaginaram que meu estado era grave, afinal, minha consulta deve ter demorado mais de uma hora. Devem ter se perguntado: Será que vai ter que arrancar os olhos? Usar olhos de vidro? Coisas do gênero.

Agora, toda vez que espero por muito tempo pelo atendimento de qualquer médico, imagino qual o tema em pauta na sala. Estará ele discutindo o sentido da vida, a importância das células-tronco, o governo Lula? E toda vez que o paciente sai da sala após longas consultas fito-o com olhar desconfiado e confuso: devo agradecê-lo por ter sido ele meu antecessor ou será que é daqueles que não enxergaram as letrinhas na parede?

domingo, 27 de janeiro de 2008

O Último Ato (Cap. 2 - Parte 1)

2 – Reencontros e Descobertas.

Seis anos se passaram e estou retornando à minha terra natal, uma semana para o aniversário de Yuki. Perdi o contato com todos quando deixei o país, e agora não sabia o que tinha acontecido em minha ausência, todos os meus familiares se mudaram para outra cidade e também não mantive contato constante com eles, me lembrei de Yuki quando acordei no avião com a aeromoça me informando nossa chegada.

Ficaria na antiga casa de meus pais, e durante todo o percurso não parava de pensar no que Kenji estaria fazendo, se já retornara de sua viajem a trabalho, como Bianca estaria e a aparência de Yuki agora com onze anos e daqui uma semana, doze.

Felizmente meus pais deixaram o meu quarto como estava antes de eu partir, pude achar minha agenda com os telefones. Encontrei o da casa onde Kenji e Bianca moravam, estava sem linha telefônica, então fui até um telefone publico de um posto de gasolina que ficava próximo de casa.

Já era fim de tarde quando liguei para o número que constava na minha antiga agenda, assim que coloquei o cartão torci para que eles não tivessem mudado de número. Uma mulher com voz suave e fraca atendeu, parecia estar doente pela maneira que pronunciava as palavras, ou muito cansada.

“Alô?”, dizia a voz da mulher.

“Boa tarde. Com quem eu falo?”.

“Bianca. Com quem você gostaria de falar?”.

“Bianca? Sou eu o Shinji, você se lembra de mim?”.

“Shinji...?”, ouve um silêncio, provavelmente tentava se lembrar.

“Shinji!”, tossiu após a surpresa. “Há quanto tempo! Nunca mais ouvi falar de você!”.

“Desculpe, perdi o contato com as pessoas daqui, por sorte encontrei esse numero em uma agenda antiga em casa. Como estão as coisas por ai? Como vai Yuki?”.

“Yuki?”, perguntou sem me entender.

“Sim, sua filha Yuki.”, respondi um pouco confuso, talvez a ligação estivesse ruim.

“Desculpe, Shinji.”, disse após uma pausa. “Não tenho nenhuma filha. Nunca ouvi falar de nenhuma Yuki também.”, outra pausa, “Talvez você tenha confundido com a filha de um outro amigo.”.

Não tinham nenhuma filha? Nem conhecia uma Yuki? O que está acontecendo?, pensei, imaginei ter ouvido errado, ou de repente ligado para um outro numero, mas era ela, Bianca. Poderia ter me confundido, talvez.

“E como está o Kenji?”, perguntei, talvez isso esclarecesse minha confusão, apesar de no fundo saber que não poderia ser o caso, não conhecia nenhuma outra Bianca.

Houve um longo silêncio, ouvi soluços. Estaria ela chorando? O que aconteceu nesses seis anos que estive fora?

“Desculpe. Shinji,”, quebrando o silêncio, ainda conseguia ouvir os soluços, “podemos nos encontrar? Você ainda lembra do endereço da nossa casa, né?”.

“Sim, claro. Mas o que aconteceu?”.

“Não posso...”, então os soluços viraram lágrimas do outro lado da linha, ela estava realmente chorando. “Não quero...”.

“Bianca?”.

“Amanhã às oito horas está bom pra você?”.

“Sim claro. Mas...”.

Ela desligou. Não consegui compreender direito, estava perdido, parecia que as informações vinham de um sonho e quando acordei ainda estava atordoado, perdido entre o sonho e realidade. Voltei para casa e pensei em todas as possibilidades, mas não conseguia chegar em nenhuma conclusão. O que aconteceu enquanto estive fora.

Cheguei ao sobrado em que Bianca morava, quinze minutos antes do combinado, a casa ficava em um bairro residencial tranqüilo, mas, diferente de todas as outras residências, a dela estava mudada, principalmente das memórias que eu tinha de seis anos atrás quando estive no aniversário de seis anos de Yuki. Não parecia mais uma casa de família, estava sombria e alguns borrões de umidade apareciam na garagem sem carro, as paredes descascavam e o lugar parecia ter um ar melancólico, sombrio e solitário. Me assustei ao ver o sobrado daquele jeito, me assustei ainda mais quando vi Bianca sair pela porta da casa depois de tocar a campainha.

Ela estava com uma camiseta branca larga e toda amassada, uma calça de moletom cinza meio desbotada e chinelos, provavelmente era seu pijama. Sua aparência estava ainda mais arrasada do que o da casa. Olheiras profundas, despenteada e andava como em transe a passos lentos e desregulares como se fosse uma sonâmbula. Dava para ver claramente que sua saúde estava afetada, mesmo dentro daquela roupa larga percebia-se sua magreza, pude ver seus dedos esqueléticos ao abrir o portão da entrada e sentir sua tristeza quando me abraçou com seus braços fracos e raquíticos.

“Há quanto tempo Shinji. Estou tão feliz em te ver. Tenho certeza que Kenji também estaria.”.

Entramos e sentei na pequena mesa quadrada que ficava em um canto da cozinha, me impressionei com a limpeza do lugar, da parte de fora pensava que dentro da casa estaria pior, mas foi o contrario, estava limpo e organizado, no entanto aquele ar melancólico continuava a me rodear, não estava muito confortável naquele lugar, era exatamente o oposto de como me sentia anos atrás quando vinha para as festas, o clima familiar, amigável, alegre e descontraído havia sumido.

“Onde está o Kenji?”.

Ela soltou um suspiro e olhou para o chá na xícara dela. “Você não soube, não é mesmo?”, voltando seu olhar para mim continuou: “Ele morreu há seis anos, um pouco depois que você partiu.”.

A descoberta me deixou em choque, olhei para aqueles olhos tristes com olheiras profundas, provavelmente passara a noite chorando quando abri velhas feridas com a ligação do dia anterior. Não consegui pensar; por um momento aquela pequena cozinha tinha se tornado ainda menor, mais apertada e abafada, não conseguia mais respirar direito, tive vontade de levantar e sair correndo de lá. Não conseguia chorar, ainda processava o que havia ouvido, a cabeça começou a girar, a visão embaçar, tive vontade de gritar e acordar daquele sonho, ver Yuki, Kenji e Bianca felizes me recebendo com abraços, contaria tudo sobre minha viagem a eles e muitas novas historias para Yuki se ela ainda se interessasse por essas coisas, mas aquilo era real, não podia fugir.

“Como?”, foi tudo que pude balbuciar com minha voz fraca, meus olhos lacrimejando.

“O avião dele.”, lágrimas começavam a escorrer, pingavam dentro da xícara, ela soluçava por entre as palavras. “O avião dele caiu indo para o Japão. Disseram que foi uma falha na queima de combustível, ou algo assim. Ninguém sentiu nada, eles garantiram.”.

“E-eu...”, não conseguia falar, limpei minhas lágrimas na manga da minha camisa, respirei fundo e tentei recomeçar. “Eu sinto muito, Bianca. Eu... não sei o que... falar...”.

Ninguém falou mais nada até tomarmos todo o chá, em silêncio, as lágrimas pingando e pouco a pouco desaparecendo salgando nossas xícaras de chá. Não sentia que havia perdido um amigo, mas sim que eu havia abandonado um, assim como sua família.

“Você...”, disse e ela desviou o olhar da pia com as xícaras para mim. “nunca ouviu falar em uma Yuki?”.

“De novo? Não, nunca ouvi falar.”, se virou novamente para a pia.

“Nem nunca tiveram uma filha?”, ousei a perguntar novamente.

“Shinji...”, apoiou os braços na pia olhando fixamente para as duas xícaras e outras coisas que eu não podia ver sentado na mesa, sem se virar ela suspirou e continuou: “já disse que nunca tive uma filha, nem um filho. Por favor, já é doloroso de mais ter perdido o Kenji, lhe peço por favor, não me faça essas perguntas. Não é culpa minha você ter sumido assim e não ter tido noticias do acidente.”

Da primeira vez pensava não ter ouvido direito, ter me confundido, mas agora estava certo. Ela realmente não conhecia Yuki, ou pelo menos parecia ser assim. Resolvi não falar mais nada, apenas me despedi e em silêncio nos abraçamos no portão e parti.

--Fim do capitulo 2, parte 1

domingo, 20 de janeiro de 2008

O Último Ato (Cap. 1)

1 – A Última Festa.

Era a filha de um antigo amigo de infância. Seu nascimento foi inesperado, como qualquer gravidez de adolescentes, mas ao contrario do que acontece com a maioria dos jovens casais que esperam um bebê, eles viviam felizes e a espera dessa menina apenas acentuou esse sentimento de felicidade entre os dois.

Claro que, como qualquer acontecimento do gênero a família de ambos os lados entraram em desespero, ficaram nervosos, mas como uma tormenta que acontece nas famílias, chegou a calmaria, aceitaram e inclusive regozijaram a chegada da menina chamada Yuki. Decidiram dar esse nome à ela devido seu significado japonês: neve; a língua nativa dos dois, pois sua pele era branca como tal e suas lágrimas quando brilhavam com a luz, pareciam pequenos flocos de neve.

Fui o padrinho distante desta criança, não oficial, mas considerado por ambas as famílias como um parente próximo, apesar de não ter tanto contato com meu amigo como tinha quando éramos menores, sempre ia às suas festas de aniversário e nesse único dia nós conversávamos até o fim da festa e ao terminar ajudava com a limpeza.

Neste aniversário ela comemorava seis anos, já estava crescida e se tornara uma menina simpática e alegre, todos se cativavam muito com sua felicidade. Acreditava que ver a inocência de uma criança leva todos os problemas e trás uma grande paz para os mais caóticos dias.

“Você tem certeza, Kenji?”, disse acendendo um cigarro, olhando na distância Yuki brincando com os familiares. “Yuki é sua filha, você sair assim da vida dela, eu não acho que vai fazer muito bem.”

“Shinji, a situação tá difícil, não consigo achar um emprego e a Bianca tem uma saúde muito frágil para cuidar da filha e trabalhar, não quero entregar esse fardo para ela.”, e sentou-se na cadeira ao meu lado.

“Vocês realmente são almas gêmeas, nunca vi nada do tipo, toda essa “melosidade” me espanta.”, falei dando um trago e assoprando com um sorriso. “Mesmo assim, entendo que suas intenções sejam nobres, mas é importante para o pai participar da vida da filha.”.

“Também acho, mas preciso garantir o futuro dela, Shinji. Sem falar que aqui ela pode contar com a família. Talvez a nossa felicidade esteja condenada a acabar, mas não vou permitir que a felicidade da Yuki acabe.”

“Palavras bonitas, no entanto...”, pensei por um momento nas palavras de uma antiga amiga. “E se a felicidade dela for a felicidade de vocês?”.

“Eu não sei mais o que fazer...”, ficamos em silêncio, acredito que ambos pensássemos no futuro, no que iria ser de Yuki.

“Japão então, não é?”, disse para quebrar aquele silêncio que começava a me incomodar.

“Sim, e você Londres.”, respondeu depois de um instante. “Quem diria que íamos terminar assim, alguns anos atrás não conseguíamos nem pensar no que fazer após a faculdade.”.

“É verdade.”.

A festa continuou, conversei com os familiares e amigos e, quando a noite chegou e as pessoas começavam a ir embora, Yuki apareceu correndo com os braços abertos em minha direção.

“Tioshi! Tioshi!”, gritava ela.

“Ainda não perdeu essa mania, pequena?”, disse abraçando ela e colocando-a na cadeira ao meu lado. “Tioshi é estranho, pode me chamar de Tio Shin.”.

“Não! Tioshi é Tioshi! E sempre vai ser Tioshi pra Yuki!”, deu uma risadinha e ficou balançando as perninhas na cadeira que parecia ser de gigantes perto do tamainho dela.

“Tudo bem, entendi. Pode me chamar assim, mas ainda acho estranho.”.

“Não é estranho! Tioshi é kawaii!”.

“Bonitinho? Ta aprendendo rápido japonês, não?”, perguntei espantado, não imaginava que ela estava crescendo tão rápido, embora talvez o meu espanto tenha sido devido a minha falta de contato com crianças, ela era a única que eu conversava.

“Sim, a ba me ensina.”.

Ba? Ba-chan? A vovó?”.

“Isso! Tioshi...”, falou com uma voz tímida. “conta uma historia pra mim?”.

Contei três historias aquela noite até ela adormecer, após a colocar na cama ajudei com a limpeza da festa. Voltei para casa e no dia seguinte estava em um avião indo para Londres.


--Fim do Cap.1

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Neve de Ano Novo - Parte 3 (FINAL)

-00:00

Ouço sua voz doce e suave, tão única que poderia reconhecer a qualquer distância, parecia estar sentada ao meu lado. Estava deitado, não sabia onde, tudo estava escuro, não conseguia me mexer. Sentia sua mão macia e morna acariciando minha cabeça conforme falava.

“Será que os flocos de neve são as lagrimas derramadas por um coração que se tornou frio pela solidão?”

No fundo, distante, ouço o barulho de explosões e desperto em um salto em meu quarto. Estava desnorteado, não sabia o que aconteceu, senti ter perdido algo importante, não me lembrava de nada, nem de como eu havia parado no meu quarto.

Suado e ofegante, as luzes estavam todas apagadas, mas os fogos explodindo iluminavam o suficiente para olhar em volta, não havia nada. Observei por mais alguns instantes os fogos até meu coração se acalmar. Já era ano novo.

Voltei então a me deitar, estava tonto, o teto do quarto girava e as pálpebras não tardaram em pesar e me trazer o sono.

Nevou em São Paulo naquela madrugada.

-7:00 (1º dia do novo ano)

Acordei ainda atordoado, tive um sonho muito estranho, estava na cobertura do apartamento e uma garota pulou de lá, não pude salva-la apesar de todos meus esforços. Senti que a conhecia há muito tempo e comecei a chorar, não sabia o porquê exatamente, se tudo havia sido um sonho, mas os sentimentos pareciam aflorar tão forte que não pude resistir as lagrimas.

Após minha crise de choro reparei em minhas roupas, as mesmas encharcadas de ontem, resolvi tomar um banho e comer algo. Depois me arrumei e como de costume todo 1º dia do ano ia à casa do meu amigo em sua cobertura e chamava ele e sua família para o festival de ano novo tradicional japonês que ocorria no bairro da Liberdade.

Estava fazendo um frio descomunal aquela manhã, coloquei os casacos mais pesados que tinha e sai. Quando passei pela entrada do prédio me assustei, estava tudo branco, neve havia caído. As pessoas se aglomeravam nas ruas admiradas e assustadas discutiam, as crianças que pareciam bolas de algodão de tantas roupas que usavam tentavam brincar com a neve que, provavelmente, só haviam visto em filmes.

“Realmente ferramos a natureza a esse ponto?”, pensei enquanto caminhava em direção ao apartamento do meu amigo.

São Paulo não estava preparada para neve, então muitas ruas estavam interditadas, policiais, CETs e bombeiros trabalhavam às pressas para botar ordem no caos que ela provocou. Tive que ir andando, e foi uma longa caminhada, mas pude me entreter bastante com aquela visão única da paisagem de São Paulo, eu também nunca tinha visto neve pessoalmente. Iria chegar atrasado, mas provavelmente não haveria festival esse ano novo, não sabia por qual razão então estava indo até o apartamento dele, poderia ter ligado para avisar, como já estava no meio do caminho, não compensaria voltar agora; pelo menos, pensei, poderia conversar um pouco com ele e discutir a respeito desse evento único e bizarro que a natureza, ou nós mesmos, trouxemos.

-9:30 (1º dia do novo ano)

Ao tocar a campainha sua esposa logo abriu a porta.

“Meu Deus! Você veio!”, disse me puxando para dentro do apartamento que estava com a lareira acesa.

“Meu marido tentou ligar para você, mas ninguém atendia, ficamos preocupados.”

Logo ele apareceu, seus olhos estavam arregalados de susto e espanto.

“Como a vida lhe trouxe até aqui amigo?!”, continuou ao me dar um abraço forte. “Fiquei preocupadíssimo com você! Essa neve, você não atendendo ao telefone... Confesso que pensei o pior”.

Soltando do abraço eu dei uma risada meio sem jeito, de fato não estava acostumado com tanta preocupação assim, era até que gostoso sentir aquele afeto dos outros as vezes.

“Desculpe. Acho que esse ano não vai ter festival na Liberdade, não é?”, disse tentando aliviar a preocupação que evidentemente sentia.

“Com esse tempo?! Não mesmo!”, exclamou apontando para fora, a sacada e as bordas da porta de vidro estavam com uma camada de neve. “Mas já que está aqui, almoce conosco, amigo! Convidei uma moradora nova, a conhecemos ontem depois que você saiu! Acho que você irá gostar muito dela. Já que não podemos ir ao festival, vamos todos almoçar juntos”.

Não queria, mas de fato as ruas demorariam para ficar limpa e com isso não haveria ônibus por um bom tempo, então decidi ficar; precisava de companhia, o sonho fez com que um sentimento muito vazio se alojasse em meu corpo, acreditava que se saísse de lá e voltasse para o meu apartamento sozinho, iria ficar chorando, aqui pelo menos me sentia confortável e os sentimentos de vazio se preenchiam com os de alegria.

Ficamos sentados no sofá, sua esposa estava na cozinha e seu filho ainda dormia. Não conversamos, apenas ficamos observando a neve que derretia na sacada. Quando a campainha tocou sua esposa foi atender.

“Oi! Seja bem vinda.”, disse sua esposa cumprimentando a visitante.

Uma voz doce e suave respondeu, um calafrio subiu pela minha espinha. A neve derretia, lembranças que não podia distinguir se eram um sonho ou realidade voltavam, o sentimento de nostalgia de uma vida passada aflorava em minha alma. Suas palavras ecoavam no fundo da minha mente.

“Será que os flocos de neve são as lagrimas derramadas por um coração que se tornou frio pela solidão?”

“Gostaria que na próxima vida nos encontrasse, eu ficaria muito, muito feliz.”

De fato, a natureza derramou suas lagrimas frias em São Paulo, mas conseguimos nos conhecer em uma outra vida...


--FIM

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Reprise - Parte 3 de 3

3ª PARTE

Ao abrir os olhos sabia exatamente o que veria. Sentia que já tinha passado por tudo isso. Tanto é que quando decidi, sem medo, abrir os olhos, os fogos de artifício me cumprimentaram sorridentes, explodindo no céu escuro coberto de nuvens. É ano novo em São Paulo, chove e isso não me incomoda nem um pouco. Fiquei deitado por um tempo antes de tentar entender se havia bebido, fumado ou qualquer coisa do gênero. Deixei que a chuva molhasse meu rosto por um bom tempo.

Eu podia pressentir o que aconteceria nos instantes seguintes, nos próximos dias; se por alguma razão foi-me concedida a oportunidade de reviver tudo, talvez seja melhor, pelo menos desta vez, agir de outra maneira.

Sempre fui um sujeito irritado. Desconfio que seja essa a simples razão de não me conformar facilmente com as coisas. É claro que há sempre uma maneira melhor de se lidar com o inesperado e com a vida. Eu optei por gritar, ofender e agredir. Culpo meus pais por isto.

Meu pai era italiano. Trabalhava das oito horas da manhã às dez da noite em sei lá o que. Nunca nos faltou comida, portanto, nunca quis saber qual seu ofício. Minha mãe era uma alemã afetuosa. Nunca vi meus pais brigando. Na verdade, não sei se deveria os culpar por qualquer coisa.

Sem mesmo tentar acabei levantando, uma força superior me ergueu e deixei que me arrastasse feito um fantoche. Me limitei a impedir uma queda direta ao chão apenas me apoiando nas paredes úmidas pela chuva.

O taxi, conforme previa, me esperava. Tentei ver o que havia ao meu redor, não conseguia; tudo permanecia embaçado. Tentei ver o número do carro, também sem sucesso. Quando entrei no veículo, aquele sujeito cujo rosto já sabia que jamais conseguiria identificar fitava-me no espelho. Mesmo sem que eu dissesse uma palavra, começou a dirigir.

Dentro do taxi era como se estivesse em um pequeno mundo, não tinha contato nenhum com o exterior, que era apenas uma nuvem coberta pela chuva e pelo vapor que tornava impossível ver qualquer coisa através da janela.

O motorista fitou-me pelo espelho, aproveitei para sorrir e dizer: “Boa noite. Como vai?”. Para minha surpresa este me respondeu com um sorriso.

- Feliz ano novo para o Senhor.

Novamente, outra olhada pelo espelho.

- Não sei para onde vou, não soube das o outras vezes. Mas ao invés de importunar-lhe com minhas fúteis indagações, me limitarei a desejar-lhe um maravilhoso ano.

Percebi que o taxista diria agora as palavras já quase decoradas por mim:

- O senhor parece estar cansado, porque não descansa um pouco?

Sorri, mas não fiquei zonzo, minha cabeça não doeu, não me senti mal, apenas adormeci.

Acordei em meu apartamento, largado em minha cama com a mesma roupa, que ainda estava ensopada, imaginei como seria se apenas ficasse deitado e não me levantasse, não fosse à sala. Quando ouvi o primeiro choro meu coração partiu, uma lágrima escorreu de meu rosto. Não queria levantar.

Porém, não teria opção; ergui-me sob meus pés e troquei de roupa. Respirei fundo e me dirigi à sala de estar. Vi o vulto de minha irmã ao lado do sofá, onde sentavam meus tios sérios, fumando. Não sei por que das outras vezes não consegui situá-los, mas desta vez pude ver onde cada um se encontrava. Seus rostos permaneciam esfumaçados.

A sensação de que havia morrido batia forte em meu peito; mesmo assim decidi que faria o meu melhor desta vez; pode ser que das outras vezes fosse um sonho, uma premonição.

Minha tia se aproximou. Abracei-a com vontade, com sentimento. Ela dizia: “Nós sentimos muito, meu querido. Sentimos tanto!”.

- Eu sei. Eu sei. Muito obrigado pelo apoio. Muito obrigado por tudo.

Assim que minha tia se afastou minha irmã se aproximou dizendo:

- Marcos, o Marcolito, faleceu. Foi um acidente de carro, horrível!

Abracei-a fortemente, de modo que abafei seu choro em meu peito. Acariciei seu cabelo, disse-lhe inúmeras vezes que tudo acabaria bem. Estava tudo bem.

Tenho inúmeras lembranças de meu irmão. Enquanto meu pai trabalhava era ele quem cuidava de mim, me ensinou tudo que sei. Há anos não o via. Ele morava no interior, tinha esposa, filhos, talvez um cachorro. Não sei. Afastei-me de minha família. Não agüentavam meu gênio forte.

A última vez que vi meu irmão foi quando me livrou de um problema na delegacia. Creio que fui pego dirigindo bêbado e foi ele quem pagou a fiança. Não me lembro.

Sinto tanto por não ter visto meu irmão, ter-me afastado de todos. Mas não sei se devo me culpar por tudo isto.

Estranhei o fato de não ter perdido os sentidos desta vez. Mas mesmo contra minha vontade peguei as chaves de casa, minha jaqueta e fui para a rua. Não podia me controlar. Flagrei-me andando pela cidade. Não sabia que horas eram, mas era escuro e estava muito nublado.

Ouvi Jorge me chamando, ignorei tal fato, continuei andando. Jorge chegou a gritar meu nome várias vezes, pedindo para que esperasse, mas não o fiz, continuei andando e este sumiu na neblina.

Enfim chegara o ponto que tanto esperei. Ouvi o assovio do trem, podia ouvir seu barulho, os quilos de metal em uma velocidade aparentemente incomensurável. Vinha me pegar.

Por razão alguma comecei a correr feito um louco. Estava leve como o ar. O assovio insistia em ressoar, avisava-me que estava a caminho. Meu coração começou a bater mais rápido, as lagrimas escorriam pelo meu rosto, mas meu coração estava leve, livre de remorsos.

Corria como o vento, o assovio se aproximava, o barulho da máquina anunciava o derradeiro encontro. Finalmente ele apareceu. Era do tamanho de um prédio de três andares, negro, o farol iluminava apenas meu corpo, como se eu fosse uma espécie de alvo.

Desperdicei todo ar que sobrava em meus pulmões com um grito que se misturou com o barulho do assovio do trem, abaixei a cabeça e o atropelei.

Não havia mais fogos de artifício, chuva, irmã, primos e primas, tios e tias. Não importavam mais os telefonemas, a secretaria eletrônica, fita com mensagens, parede, estilhaços, meu humor.

A única coisa que importa é o que restou, o assovio do trem.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Neve de Ano Novo - Parte 2

-20:15

No meio do caminho entre a antena e a proteção da sacada vejo uma mulher do outro lado do parapeito da sacada, seus longos cabelos negros com mexas douradas balançavam selvagens contra o vento agressivo da cobertura, sua camisola de seda branca mexia-se acompanhando os cabelos, estava descalça e não usava mais nada. Era linda, parecia uma deusa, se não fosse pela bizarra circunstância em que nos encontrávamos ficaria excitado com aquela visão.

“Não!”, gritou novamente se agarrando ao parapeito e se afastando de mim.

Fiquei por um tempo parado, não sabia o que fazer ou como agir, parecia cena de cinema, mas, por mais irreal que aquela cena parecesse, não era um filme. Acendi um cigarro e me aproximei lentamente do parapeito e apoiei os meus braços, não podia olhar para baixo devido minha fobia de altura, se eu olhasse provavelmente o meu salgado e meu café iriam se juntar à garoa de quem estivesse passando lá em baixo.

“EU VOU PULAR! SE AFASTE!”

“E eu vou fumar”, respondi dando um longo trago, “Não poderia pular depois que eu acabar esse cigarro? Enquanto isso, nós podemos conversar”. Senti a bílis subir pela garganta, o que diabos eu estava fazendo? Parecia agir sob hipnose, não fazia idéia de minhas ações.

Ela pareceu se acalmar, fiquei à um metro de distância e com o parapeito entre eu e ela. Ficamos em silêncio por um longo tempo e meu cigarro estava quase acabando, tinha que falar algo, enrolar, só não sabia o que.

Foi ela, afinal, quem quebrou o silencio.

“O que você está fazendo aqui?”

“Como assim? Estou fumando, como pode ver...”

“Não é isso que quero dizer..”, disse encostando no parapeito e olhando 25 andares para baixo. “Você poderia estar fumando no seu apartamento, não precisaria estar aqui. O que quero dizer é: o que você esta fazendo aqui? O que o trouxe até aqui?”

“Hum”, refleti por um momento, de fato não sabia o porquê de estar ali naquele momento, nunca fumei na cobertura, mas por algum impulso neste dia resolvi ir até lá como em transe. “Se eu fumasse em casa eu não teria a mesma paisagem que eu tenho aqui, sem falar que eu não estaria conversando também.”

“Nesta paisagem de concretos? O que há de se apreciar aqui?”

“Não creio que o importante seja o que eu vejo, mas sim a paisagem que eu tenho em mente. Aqui relaxo mais, vejo todos esses prédios e imagino como seria se isso tudo fosse um grande e bonito jardim ensolarado”, disse pisando na bituca de cigarro, por um momento esqueci que era aquele cigarro que impedia ela de pular, mas, felizmente, estava enganado; ela estava mais tranqüila que antes.

“A imagem que eu tenho em mente não difere desta triste, acinzentada e solitária...”, disse ao olhar para o horizonte, o prédio era relativamente mais alto que os outros da região, então podia se ver muita coisa da cobertura. “Estou só...”

“Como está só? Eu estou aqui, não?”

“Não é isso, você não entenderia, ninguém entenderia”, disse olhando para mim e depois baixando a cabeça. Era claro que ela estava triste, qualquer um poderia perceber isso, não só pelo fato de ela estar lá para se suicidar, mas também como sua voz, tão doce e suave, estava tão depressiva que parecia chorar.

“Talvez eu entenda. Mesmo cercada de amigos, pelo menos que você considera amigos, se sente isolada, sozinha. Mesmo quando estão conversando, você se sente fora da conversa, como se estivesse acontecendo em um outro mundo, afastado e isolado de você”, fiz uma pausa para acender um outro cigarro, ela me olhava atentamente e eu apenas observava a paisagem tentando escolher as palavras para o que iria dizer em seguida. Após um longo trago continuei: “Parece que você não consegue se socializar, não é por falta de tentativas, pelo contrario, sempre tenta iniciar um assunto, mas acaba em algo da qual você desgosta, no entanto todos os outros parecem se interessar. Então cada vez mais você fica sozinha em seu canto, apenas ouvindo e observando, imaginando se algo a tiraria daquela situação desconfortável, para longe deles, mas percebe que isso não irá acontecer, eles estão se divertindo e você está chorando, ninguém percebe, nem mesmo você, mas sua alma sabe as lagrimas que derrama, o sentimento de vazio e solidão que se parece com um buraco que se forma de dentro para fora de seu peito.”

O silêncio cai entre nós, penso se dissera algo de errado, mas eram as palavras sinceras que eu tinha, pelo menos era assim para mim. Com uma mão ela segura no parapeito e com a outra segura sua camisola entre seus seios com força e então lagrimas escorrem pelo seu belo e pálido rosto.

“Machuca muito”, disse finalmente ainda de cabeça baixa evitando o olhar direto para mim. “Essa sensação de vazio, é como se todos me ferissem sem saber e mesmo se soubessem, sinto que não ligariam e apenas me ignorariam. Não quero mais me sentir assim!”

“Ninguém quer...”, respondi afastando o meu corpo do parapeito, mas mantendo minhas mãos nele, respirei fundo e continuei. “Mas se você pensar assim, pensar nas coisas negativas – veja eu sei como é fácil se lembrar dos momentos ruins e como é raro nós conseguirmos apreciar em lembranças os momentos felizes, pois os tristes sempre parecem se sobressair aos felizes – ninguém conseguiria viver, esses pensamentos negativos são o pior veneno da alma. Por isso não acho que você devia acabar com sua vida só por isso, você estaria apenas fugindo, não aprenderia nada e perderia a única coisa que você sempre terá de importante: a vida.”

“Não é só por isso que desejo me matar...”, disse olhando fixamente para mim, seus olhos vermelhos ainda derramavam lagrimas e soluçava vez por outra enquanto falava. “Havia um rapaz...”, sempre há, pensei, “eu amava muito ele, queria sempre ficar do seu lado e fazer tudo que me fosse capaz para agradá-lo, para ver seu sorriso e fazer com que se sentisse feliz, queria fazer da felicidade dele a minha”.

Então era por amor, confundi as coisas dela com as minhas próprias, me equivoquei e talvez tenha sido pior, em todo caso ela ainda não pulou, o que já era muito bom, dei a ultima tragada do segundo cigarro e novamente pisei nele logo ao lado do anterior, logo depois ela, de cabeça baixa, continuou: “Mas um dia ele me disse que eu era muito boazinha, muito inocente e que não conseguia me impor a nada. Disse que por isso me traiu e mesmo assim eu não pude fazer ficar brava com ele, e então ele decidiu partir com a amante”, então vejo ela fechar seus olhos, as lagrimas escorrerem e passa a sentir o vento e a garoa que ainda insistia em fazer. “Me diga, como alguém que tem os pensamentos que eu tenho pode ser boazinha? Como alguém que se sente ferido e traído pelos outros pode ser inocente?”

Refleti por um momento, queria muito fumar outro cigarro, mas ao tirar o maço do meu bolso vejo que está vazio, amasso-o e coloco de volta no bolso. “Qual o sentido da vida?”

“Como?”, ela se volta para mim um pouco surpresa pela minha pergunta que parecia não ter relação com o que acabara de falar, e de fato não era para ter relação, eu só não sabia o que dizer a respeito do que ela me disse, então decidi por mudar um pouco o rumo da conversa, afinal o objetivo era fazer com que ela NÃO pulasse.

“O sentido da vida”, repeti, “Qual o sentido da vida? Para você pelo menos.”

“Felicidade?”, respondeu um pouco insegura, pelo menos consegui atrair seu olhar de volta para mim.

“HAHAHA! De fato um otimista pensaria assim! Viu! Você não é tão pessimista como pensava. No entanto eu penso diferente. Acredito que não existe um sentido da vida, não acredito que a vida tenha um sentido, uma razão ou um motivo.”

“Então...”

“Então que acredito que a vida seja por si um todo; ela não precisa de sentido, nem motivo ou razão, ela existe por si e é o que importa. Vivo meus dias apenas por viver, faço o que penso ser o certo sem ferir ninguém e faço tudo que posso quanto posso, sem me importar com o tempo que tenho ou estou perdendo. Vivo para vida e penso que isso é o suficiente. Momentos ruins vão acontecer, vou chorar, vou me ferir. Mas também haverão momentos bons e felizes. Veja”, tirei de dentro do sobre-tudo a garrafa de champanhe que meu amigo havia dado pela manhã, “Um amigo de infância deu de presente para mim, é tradição, todo final de ano ganho um. Nunca abri nenhum deles, sempre os guardo, pois eles me recordam dos momentos felizes que passo com ele e a família dele. Por isso eu vivo, para presenciar todas essas coisas novas que a vida pode trazer, sejam elas boas ou ruins, eu sempre vou passar por elas da melhor maneira que puder.”

“É bom ter amigos não é?”, disse com uma voz triste, mas não chorava, talvez não houvesse mais lagrimas naquele corpinho frágil.

“Sim, isso posso afirmar, mas tenho poucos amigos, posso contar nos dedos”, estendi meu braço da direção dela apenas levantando o indicador. “Mas agora...”, e levantei mais um dedo resultando dois levantados, “...tenho mais uma”, e sorri para ela. Não sabia o por quê, mas de fato eu sentia como se ela fosse uma amiga muito próxima e importante para mim, mesmo nossa conversa tendo sido breve demais para se conhecer uma pessoa, eu me sentia confortável e confiante com ela, diferente de como me sentia com as outras pessoas.

Ao abaixar meu braço vejo ela corar. Ela se encolheu e por um momento me assustei pensando que ela iria escorregar, mas por sorte não aconteceu. Então ela sorriu, seus lábios finos e graciosos, seus olhos fechados brilhavam com os vestígios das lagrimas misturadas com a garoa, era um sorriso sincero, verdadeiro, inocente; foi a primeira vez que vi um sorriso como aquele, digno de um anjo, de uma deusa.

“Obrigada.”, virou-se e olhou para baixo, naquele momento meu coração parou, a adrenalina tomou meu corpo, o vazio de meu corpo apertou tudo que estava dentro dele de maneira que com uma única batida do coração, pareciam explodir todos meus órgãos, as pernas tremiam, as mãos estáticas, os olhos arregalados; era como se o espírito abandonasse o meu corpo de maneira tão abrupta, que ainda não tinha me dado conta de sua partida.

Ainda com um sorriso ela vira o rosto para em minha direção uma ultima vez.

“Gostaria que na próxima vida nos encontrasse, eu ficaria muito, muito feliz.” E pulou.

Corri para onde ela estava, estendi meu braço por pura reação do corpo, não tinha mais controle de nada, era como se eu estivesse vendo tudo do alto, como um espectador que não pode influenciar nos acontecimentos, mas foi tarde, não pude pega-lá. Vejo ela cair, no entanto não pude ver até o final, ela havia desaparecido antes de atingir o solo.

A adrenalina, a tontura de ter visto o chão do alto do prédio e a sensação febril que minhas roupas molhadas passavam me atingiram como uma pedra em minha nuca, o mundo girou de uma forma irregular, caído no chão olhava para o céu, já era noite, não podia ver as estrelas devido à poluição, só conseguia sentir a fina garoa caindo sobre meu rosto.

Desmaiei.


--Fim da Parte 2