terça-feira, 15 de julho de 2008

Trecho

Era uma noite como todas as outras mas esta era excessivamente negra. A lua cheia se escondia atrás da cortina de névoa cinza e parecia estar suspensa no céu apenas por um barbante prestes a se romper; as calçadas estavam completamente vazias, nem as almas perdidas ousavam perambular com seus andrajos por aqueles cantos escuros que exalavam um cheiro seco e arenoso, e invadiam nossas narinas impiedosamente; as fachadas das lojas estavam trancadas e protegidas pelas armaduras de ferro impedindo que víssemos o que cada uma abrigava, nem as luzes amareladas que escapam pelas janelas daqueles que se esquecem de dormir deram o ar de sua presença. Era como se a escuridão tivesse lançado um decreto irrevogável: esta noite não haverá luz.

Meu pai e eu caminhávamos de mãos dadas entre a cortina de fumaça – digo que aquela figura cuja mão eu segurava era meu pai, mas em momento algum consegui olhar diretamente para seu rosto. Isto é uma das coisas que acontecem nos sonhos, há uma convicção em nossa alma que nos acalenta, sussurra ao nosso coração: este homem é seu pai, mesmo que não se pareça em nada com ele, este homem é seu pai.

Eu mesmo já ouvi relatos de pessoas que acordaram com seus corações tentando fugir-lhes pela boca e olhos inundados em lágrimas: sonharam que a mãe havia morrido. Porém, quando pararam para analisar o pesadelo percebiam que aquela figura, cuja alma foi levada por anjos com asas cor de neve, em nada se parecia com sua mãe. No entanto, esta constatação, de que tudo não se passou de um sonho, não os impediu de sofrer e sentir o rombo da perda na alma, alguns sofreram por um dia outros por uma semana inteira. Eis o efeito que certos sonhos podem causar em um indivíduo.
De qualquer forma, aquela figura, que eu sabia por conta de qualquer razão metafísica que era meu pai, tinha rosto encoberto por uma fumaça cinza que se misturava com a névoa e se confundia com as nuvens, usava na cabeça um chapéu bege, um longo sobretudo cinza, que lhe cobria quase o corpo inteiro, as calças e os sapatos marrons. Eu não vestia nada além de uma camisa amarela, uma bermuda e um par de sapatos de couro, bem gastos.

Caminhávamos com passos tranqüilos por entre o enigma que era aquela rua. Não sentia muito medo, mas o fato de não distinguir um palmo à minha frente me obrigou a aguçar os sentidos o máximo que pude.
De repente, rompendo o colete de trevas e névoa que dominava tudo ao redor, surge em nosso caminho um filhote de labrador. Ele corria frenético em nossa direção, com sua língua rosada à mostra e abanando violentamente seu curto rabinho.
O pequenino filhote em momento algum parecer temer a presença daqueles dois estranhos parados na sua frente, ao contrário, sua amabilidade e afeto conosco eram incríveis. Mesmo sendo um filhote com poucos dias de vida – fato que presumi pelo seu tamanho, não teve dificuldades para se apoiar em minhas coxas com suas duas patinhas dianteiras e lamber minhas mãos com tanto carinho que só de lembrar me enchem os olhos de lágrimas.