terça-feira, 23 de setembro de 2008

A Ponte - parte I

Houve um tempo em que achei que minha miséria não seria notada. Disseram que a primeira coisa que notaram em mim foi que meu rosto ficara branco como uma folha de papel. Tinha olheiras profundas que denunciavam minhas poucas horas de sono – quantas horas não desperdicei fazendo cálculos e mais cálculos.

Com o tempo fui perdendo peso, e isto se deu com a mesma velocidade que perdia minha cor. Minhas calças ficaram tão grandes que dentro delas caberiam dois de mim. Pobres calças. São usadas religiosamente todo dia. O tecido já perdeu o brilho, as marcas de sujeira decorrentes do uso vão contaminando, pouco a pouco, cada centímetro de minhas pobres calças.

Minhas camisas já estão rotas; dificilmente poderia se dizer que são camisas, pois mais parecem trapos utilizados para engraxar os sapatos.

Eu só uso as camisas com meu paletó cujo pó e sujeira já são partes integrantes da peça; a costura de meu paletó já está toda rasgada e remendada, o mesmo pode-se dizer dos bolsos. Assim, quando saio de manhã, carrego meus documentos nas mãos, pois se colocar em alguns dos bolsos certamente não os veria novamente; já que, como disse estão todos furados.

É vestido desta forma - portando meus andrajos como se fosse uniforme escolar - saio todas as manhãs de minha casa improvisada de baixo da ponte que nos serve de teto, em busca de alguns trocados para sustentar minha pequena Linda, que fica o dia todo cuidando de Maria, nossa filha.

Esta vida não é tão ruim quanto parece. Semana passada, saí como sempre de minha pobre casa; chovia muito e fui obrigado a me proteger com um pedaço de papelão que muitas vezes me servia de toalha de mesa de jantar. Era neste pedaço de papelão que eu e minha família colocávamos nossos pratos e, após rezar e agradecer à Deus, comíamos os restos de outros que para nós era um banquete.

Eu caminhava pelo mesmo caminho de sempre: me dirigia à uma praça onde ficava sentado nos bancos, pedindo uma ajuda a quem tivesse Deus no coração e se compadecesse desta triste figura pálida e seca como um fóssil de galinha; então, no final do dia eu juntava as moedas que conseguia e as trocava na quitanda do Sr. Paulo – Deus o abençoe – por um punhado de feijão e um pouco de farinha.

Infelizmente naquele dia chovia muito e o pedaço de papelão que utilizava como escudo de nada me protegeu. Quando já estava completamente ensopado corri para debaixo de uma tenda de uma loja que vendia sapatos para mulheres.

Qual não foi minha surpresa quando ouvi uma vendedora da loja se aproximar da entrada, próxima de onde eu me protegia e gritar:

- Ei! Seu vagabundo! Saia já daí, você está espantando nossos clientes! Vá procurar outro lugar para vagabundear!

- Mas dona, está chovendo muito! Eu não tenho para onde ir com essa chuva. Não posso me proteger aqui? Não posso ficar aqui só até a chuva parar?

- Não pode e não vai! - Gritou a mulher enquanto voltava para dentro da loja e falava alguma coisa para um homem, que, após ouvir as palavras da mulher, as feições se transformaram em algo horrível. Me pareceu que ele me xingou de dentro da loja; quando virei meu rosto para dentro para ver o que estava se passando vi que o homem que mais parecia um gladiador se aproximava de mim como um touro. Segurava uma vassoura como se fosse uma lança. Meu instinto me avisou: você será o alvo.

Esperei o homem colocar a cabeça para fora da loja. Iria explicar que não pretendia ficar na porta de sua loja muito tempo, só estava esperando a chuva diminuir um pouco.

Imaginei que ele, provavelmente por ser honesto e pai de família como eu, não iria me agredir com aquela vassoura, muito menos me enxotar dali para enfrentar aquela tempestade apenas com os trapos que mal cobriam minha pele de tão finos e gastos.

Como me doeu a primeira pancada. Achei que fosse desmaiar, mas tive forças para correr e evitar que fosse atingido novamente.

Eu entendo que minha aparência, no momento, não é das melhores. Tomo banho em raras ocasiões, mas mesmo assim meu corpo não exala uma fragrância tão repugnante a ponto de ser expulso de qualquer lugar. Às vezes tenho vontade de revidar ao agressor, tenho vontade de lhe dizer, olhando-o nos olhos:

- Pare com isso homem! Não está vendo que sou igual à você?! Sou pai de família, trabalhador!
Nunca me dão tempo de pronunciar nem o “ai!” como reflexo das bordoadas. Assim, quando vejo a possibilidade de perigo, logo corro, como um animal acostumado ao tratamento especial dos seus semelhantes.

Meu corpo era castigado pela chuva que impiedosamente me atingia nos olhos, na boca, no peito, pernas, pés e alma.

O sapato que eu usava exigia de mim uma certa técnica para andar com ele nos pés, pois, se eu pisasse com muito vigor poderia ser visto que não havia mais costura na parte de traseira, o que me obrigava a andar a andar de uma forma bem peculiar, sem tirar muito os pés do chão.
Este sapato é tão velho quanto eu. Ganhei-o de presente de um dos professores da escola em que eu era bedéu na parte da manhã e tarde. Era aluno também no período noturno.

Só de lembrar como era respeitado por todos naquele tempo as lágrimas me vêm aos olhos.
Vendo que não poderia vencer a chuva, dei por caminhar com passos lentos de volta para casa pois com chuva as pessoas não vão à praça, logo: não tenho aonde pedir ajuda.

domingo, 21 de setembro de 2008

A cidade das sombras. Cap. 1-A última noite

Capitulo 1: A última noite.

Estava em uma mesa de um bar fechado, fumaça de cigarro por todo o ambiente com apenas uma fraca luz amarelada vinda de cima da mesa redonda. Um senhor estava sentado do meu lado, porém diferente de mim estava calmo, enquanto eu estava terrivelmente ansioso.

- Temos que chamar todo mundo, se não eles vão morrer! - exclamei para o senhor que assoprava a fumaça do seu cigarro.

- Acalme-se - retrucou tranqüilo dando outro trago.

- Mas, você sabe que não deveríamos ter brincado com eles! Agora todo mundo vai morrer! - exclamei novamente, o grito ecoando pelo lugar deserto. - Temos que ficar juntos!

- Sim, concordo - apagou o cigarro no cinzeiro de vidro já cheio. - Por isso eu chamei todos para cá. Para que pudéssemos olhar um ao outro.

- Mas eles já deviam estar aqui! - retruquei como se já estivesse ciente da vinda deles. - Alguma coisa aconteceu! Sobramos apenas nós.

O senhor não respondeu. Após longos minutos sem pronunciarmos palavra sequer, um a um outros rapazes começaram a entrar e, como se nada estivesse acontecendo, sentavam-se a mesa, alguns se sentaram na mesa ao lado quando a nossa ficou sem lugares.

- Onde estão os dois? - não sabia o nome desses outros dois, mas claramente os outros me compreenderam.

- Pegaram eles - respondeu um rapaz que chegava ofegante. Com certeza havia corrido, ou melhor, fugido de algo.

- Mas como? - perguntei espantado e ao mesmo tempo amedrontado em obter a resposta.

- Não sei os detalhes, mas ouvi que invadiram a casa deles - começou o relato após tomar fôlego, seu rosto tão assustado quanto o meu. - Seus corpos dilacerados.

Todos que observavam viraram seus olhares para nenhum lugar em especial. Em suas mentes um turbilhão de pensamentos onde imaginavam qual seria o futuro inevitável e aterrador que os aguardavam. Incluindo o meu. Senti um calafrio percorrer minha espinha de baixo até a nuca. Tremi de medo.

- Então vamos todos morrer.

Me virei para o senhor que acendeu um outro cigarro, olhar disperso como de todos. Ele apenas assentiu com um pequeno movimento da cabeça. O que me assustava era que ele não parecia nem um pouco abalado com tudo aquilo.

Um padre entrou no bar pela porta de trás, o barulho de seus passos quebrou o mórbido silêncio que envolvera o bar. Todos o olharam assustados, a tensão e horror era palpável.

- Vocês não deveriam ter se metido no que não conhecem.

Sua voz ameaçadora e sem sentimentos penetrou por nossos ouvidos como pregos sendo martelados diretamente nos tímpanos. Sabíamos que não haveria como sairmos de lá. Aquela era nossa última noite na cidade.