sábado, 4 de outubro de 2008

A cidade das sombras Cap. 2 - Resultados da Investigação

Uma mulher entra em uma casa apertada, cheirava fortemente a mofo e as paredes com manchas escuras traziam um aspecto miserável para o lugar. Pano, mesa, sofás rasgados, cobertores velhos e desfiados, armários de uma madeira podre e lâmpadas penduradas ao teto sem qualquer lustre, preenchiam a casa de quatro cômodos.

Passando pela entrada era a sala, não mais de cinco passos de largura e profundidade, um quadrado perfeito se não fosse por pilhas de caixas de papelão, um sofá desbotado que fora vermelho em um passado longínquo ocupado por cobertores pesados e travesseiros velhos, e um armário enorme que abrigava uma TV tão velha quanto a primeira lançada no mundo.

Passando reto uma pequena cozinha, apertada e com teto completamente tomada pelo mofo. Uma pequena mesa quadrada no centro coberta por um pano quadriculado vermelho e branco, utensílios como chaleira de ferro e alguns potes reutilizados de manteiga e maionese, uma geladeira antiga de uma porta, provavelmente dos anos sessenta e algumas cadeiras de madeira que dariam medo de sentar.

A senhora a recebeu alegre pedindo para que entrasse, paradas na cozinha a mulher virou-se para a senhora após olhar a pobreza e situação miserável do lugar:

- Preciso ver o que a senhora conhece - disse, partindo direto para o assunto que a trouxera ali.

- Sim minha jovem, e claro - respondeu a senhora corcunda da idade. - É logo ali - apontou.

Um corredor estreito e sombrio que se encontrava do lado oposto da passagem da sala para a cozinha, estava tão cheio de mofo que a tinta antes branca da parede se tornaram nada mais que uma mancha preta. O cheiro era insuportável, a mulher sentiu logo que entrou no corredor apertado, fazendo o máximo para não se encostar nas paredes.

Entrou na primeira porta, a senhora ficou na cozinha apenas a observando, virou-se para vê-la e ela sorriu acenando com a cabeça indicando que lá era o local certo.

Passando pela porta de madeira descascada e podre. Devorada por cupins e umidade, ela viu um quarto ainda mais apertado, entretanto não era pelo espaço. Aquele lugar era relativamente maior que a sala e a cozinha, porém a pilha de bagunça era tanta que tornava o movimento beirando o impossível. Na cama um jovem de não mais de quinze anos dormia enrolado por trapos que já foram um dia cobertores. O quarto fedia quase tanto quanto o corredor.

Encontrou um caminho até a janela do outro lado e a abriu, saltou para fora e apoiou-se em uma laje de cimento que estava a apenas dez centímetros a baixo da altura da janela. Olhou em volta, um jardim sujo cercado por paredes de concreto, isolada do mundo. Seu acesso era apenas por aquela janela. Pedaços de papel, copos plásticos, bitucas de cigarro, latas de cerveja e muitas outras coisas cobriam boa parte do gramado. Saltou no que foi não mais de um metro na grama e olhou para o que buscava.

Uma árvore enorme estava na quina no fundo do jardim, seu caule enorme podia facilmente abrigar uma casa de família. Aproximando-se viu que por baixo de sua copa era tão escuro que não se podia ver qualquer coisa, nem mesmo a estria ou se lá no meio das sombras havia de fato um caule que sustentava o topo. Da parte visível do tronco via-se bolhas grotescas e bizarras, como se fossem chagas mas ao invés de estarem na pele, estavam na casca brotando e guardando um pus amarelado e fétido. Em um canto uma bolha enorme esverdeada cheio de estrias que pareciam veias humanas aparecia metade para fora e metade para dentro do caule, a parte de cima dessa bolha entrava na região sombria sem visibilidade.

Ela sentiu a bílis subir pela garganta, respirou e voltou para dentro da casa, seguindo para cozinha. O garoto ainda dormia enrolado, mas tinha mudado de posição.

A velha senhora a aguardava.

- O que é aquilo? - perguntou a mulher. Sabia o que buscava, mas não imaginava que seria de fato aquilo. Nunca tinha visto qualquer imagem ou ilustração, aquele encontro com a árvore foi inédito.

O tempo nublado começava a fechar mais ainda, ela pode ver da janela da cozinha que dava para a parte mais a frente do jardim, longe da visão daquela monstruosidade que se assemelhava a uma árvore, uma fina garoa começava a cair.

- É amaldiçoada, ninguém quer saber dela. Todos a negam - respondeu a velha séria, fria e sem expressão. - Aqui é um tabu muito forte.

- Por que ninguém faz nada?

- É uma cidade pequena, todos a ignoram, são manipulados.

- Como assim manipulados?

- Quer saber a história dessa árvore? - perguntou a velha se sentando em uma das cadeiras. A mulher fez o mesmo sentando-se na cadeira próxima a senhora.

Após se acomodar, incomodamente, na cadeira de madeira que parecia ceder a qualquer momento, ela assentiu com a cabeça olhando atentamente para a senhora.

- Contam a história de dois irmãos que brigaram muito, por poder - começou a discorrer a história. - eles se amavam no inicio, mas passaram a se odiar. Eram tão felizes que a rivalidade entre os dois e as brigas constante foram um choque.

A mulher cruzou as pernas, colocou a mão sobre seu coldre em sua coxa checando se sua arma estava lá.

- Depois de muita briga, nesta mesma casa e nesta mesma cozinha, - continuou a velha. - eles mataram um ao outro.
Parou por um instante tentando se lembrar e aproveitando para tomar um fôlego, sua velhice era evidente. Após se lembrar dos fatos, prosseguiu no mesmo tom obscuro de antes.

- Seus pais, tentando evitar a fofoca da cidade, como já havia dito aqui é uma cidade pequena e todos sabem a respeito de todos, enterraram os dois no quintal debaixo daquela árvore.

Os olhos da mulher arregalaram, era então uma maldição, previu ela.

- Era uma árvore completamente normal, porém depois de enterrar eles algumas coisas estranhas começaram a acontecer com ela. Bolhas, chagas, inclusive insetos e animais nunca visto antes começaram a nascer dela - coçou a cabeça entre o pouco de cabelo que lhe restava. - Diziam que eram dois demônios, aqueles meninos, e que a árvore é maligna por causa do rancor deles.

Silêncio. Percebendo que a senhora havia terminado e ainda chocada, a mulher perguntou:

- Por que começaram a brigar repentinamente?

- Controle da mente - respondeu a senhora.

Sua resposta foi tão inesperada quanto brusca que a fez se assustar. Tentou se acomodar melhor naquela cadeira tomando mais cuidado para não a quebrar do que se ajeitando.

- Desculpe? - interrogou sem compreender direito o que a velha quis dizer.

- O antigo padre da cidade enfeitiçou todas as pessoas através de um refresco de garrafa que ele fabricava. Todos compravam exceto eu e minha família. Sabíamos das intenções malignas dele. Todos da cidade ficaram loucos e ainda estão.

- Como assim? Loucos?

- Esse refresco os deixa ignorantes, esquecem-se do que aconteceu aqui, neste exato lugar ignoram e continuam vivendo - revelou orgulhosa de estar em uma posição diferente dos demais na pequena cidade. - Quando se trata de falar sobre essa árvore, a história e esse jardim, é um grande tabu e nenhum deles vai falar. Exceto algumas pessoas.

- Mas não eram todas que bebiam essa bebida produzida por ele?

- Sim, inicialmente - revelou. - Porém com a chegada das bebidas industriais das cidades grandes, muitos, mesmo enfeitiçadas, ficaram curiosos e começaram a beber essas outras marcas e acabaram gostando. Mas poucos continuaram, e mesmo parando de beber, o medo que reside neles é tanto que preferem não comentar a respeito das coisas daqui da cidade.

- Enquanto a você? - inquiriu a mulher. - Você bebe o que?

É claro que foi uma pergunta ao acaso, era apenas para manter uma conversa mais leve e dar uma animada. Contudo ainda sim era uma dúvida que reluzia no fundo de sua cabeça.

- Não, não - respondeu a velha senhora. - Eu só bebo essa marca...

Levantou-se de sua cadeira e caminhou em direção a geladeira, a mulher a seguiu. Abrindo a porta ela puxou uma garrafa de vidro com um conteúdo líquido amarelado, assemelhando-se com suco de laranja. O nome no rótulo dizia "Il Somair"

- Eu só tomo essa marca. Produzida aqui na cidade - disse retirando a garrafa para tomar.

- E como a senhora sabe se essa não está drogada? - perguntou.

- Ora - começou a responder a velha. - Porque essa é produzida pelo novo padre - terminou levantando a garrafa para a mulher. - Quer experimentar uma?

No mesmo instante a cabeça da mulher girou, vertigem e náusea a tomaram. A imagem do padre do qual ela investigava surgiu pregada por trás de seus olhos, podia a ver e a tocar tão bem quanto a foto real em sua mesa no departamento de investigações especiais. Se era verdade o que aquela velha senhora disse sobre o refresco do padre anterior, então também era verdade que esse novo padre estava drogando as pessoas.

- D-desculpe - disse recuperando-se do susto. - E-eu esqueci de ver uma coisa no seu jardim - afirmou apontando de volta para o corredor. - Vou voltar lá para dar uma olhada.

A senhora tomou um gole de seu refresco e acenou com a cabeça confirmando que ela estava livre para voltar ao jardim de sua casa.

Parada na laje do lado de fora da janela, a mulher percebeu algo que tinha lhe escapado antes, no canto esquerdo do jardim na outra ponta do muro onde se encontrava a árvore maligna, havia uma entrada cujo o chão estava forrada por um piso sujo, cercada por uma parede azulejada até metade e cimentada. Não podia ver mais a dentro por causa das sombras, mas algumas raízes haviam atravessado a parede e entrado no lugar. Um calafrio percorreu-lhe a espinha, não teria coragem de investigar aquela entrada melhor. Talvez fosse uma área de serviço antiga que isolaram do resto da casa conforme o tempo passou.

Desceu da laje e olhou mais uma vez a árvore, notou que uma pequena elevação mais ao alto do tronco se elevava para fora, foi de baixo e notou uma porta de alumínio com uma janela de vidro no centro. Era pequena, assemelhava-se mais como uma janela do que como uma porta, mas era o suficiente para ela passar.

Respirando fundo e retirando coragem e forças do fundo de sua alma, começou a escalar para tentar entrar dentro daquela árvore. Não sabia por qual motivo, mas ela tinha que entrar lá para descobrir melhor sobre o que estava acontecendo e a verdade sobre aquela árvore.

Depois de não mais de dois metros notou a sua esquerda uma pequena abertura cercada de concreto, possivelmente alguma coisa havia lá antes do caule penetrá-la destruindo toda a parede. Olhado melhor dentro daquela pequena abertura quadrada, entre a madeira que a atravessava internamente notou alguns insetos estranhos andando.

Um deles, que a assustou, era um escorpião pequeno e marrom, era estranhamente deformado, ao invés de garras em forma de gancho parecia que uma bolha enorme e em carne viva se formara no lugar, e em seu corpo arredondado, estranhamente inchado formavam-se chagas parecidas com as da árvore, porém elas pulsavam como se cada uma delas fosse um parasita vivendo ao redor do corpo dele.

Com o susto ela soltou a árvore e caiu de pé na grama, dando passos para trás, próxima ao muro do seu lado esquerdo parou em choque a virar-se e ver mais milhares de escorpiões do mesmo gênero andando pela parede de tijolos e cimento.

Sacou sua arma, mas não pode mirar em qualquer coisa. Estava travada, presa e paralisada de medo. Sentiu o suor frio escorrer por suas costas e testa, ou talvez fosse a fina garoa que caia do céu desviando-se da enorme copa da árvore amaldiçoada.

A grande bolha metade para dentro do caule e metade para fora pulsou, o som semelhante a uma batida de coração, porém mais forte e mais alta ecoou pelo jardim.
Fechando os olhos, ela respirou fundo.