sábado, 14 de março de 2009

Segunda Estação

A cadeira nunca foi tão desconfortável e a pilha de papel que enfeita minha mesa nunca foi tão gigante. Textos para revisar, pesquisas para concluir e não fazia tanto tempo que tinham acabado minhas férias; eu não via a hora de poder ficar longe de tudo isso o mais rápido possível. Quase não tenho tempo para escrever, o telefone dispersa minha atenção o dia inteiro; o ar condicionado não funciona direito. Calor. O Chefe, que tem feições de coruja e físico de porco passa de cinco em cinco minutos para olhar meu trabalho, sempre desferindo um olhar desconfiado para o caderno que começou a fazer parte da minha mesa.

Nesta semana teríamos reunião com o pessoal da matriz, lá de Brasília, para cobrir as eleições presidenciais, então era importantíssimo que estivéssemos organizados como formigas que se preparam para uma nova estação. Os cabelos deveriam estar cortados, os dentes brancos, o saco cheio e a cabeça vazia.

Tentava não pensar no que eu realmente gostaria de fazer do meu dia, da minha vida, nas coisas que poderia escrever, mas acho que é justamente nesse ambiente que o ócio dá às mãos à criatividade, juntas saem saltitantes para o outro lado da janela, da rua, do bairro e do país. Era justamente no trabalho, naquela sala e naquela cadeira com o estofado gasto que eu pensava mais no que eu não deveria fazer: como lavar a roupa, comprar a ração do gato, a janta de amanhã e nas três estrofes não nascidas. Não conseguia ler nada, nem a escolha sempre fácil para a capa do jornal: o estupro de crianças ou assaltos a banco, tudo muito bem regurgitado, em tom profético, prevendo o fim do mundo. Eu não conseguia decidir. Estou começando a acreditar que, como todo mundo, odeio meu trabalho.

Meus colegas não estavam diferentes. As mulheres da seção de moda conversavam baixinho, exibindo as unhas e se perguntando se o vermelho vinho combina mais que o roxo escuro. Falam dos cabelos, cremes, pomadas e como estão cansadas de trabalhar, sem nunca ter feito isso uma única vez na vida. A dupla da coluna de esportes estudava profundamente as formas da última capa da Playboy, o chefe passava, de cinco em cinco minutos na minha mesa.

Só o setor financeiro sorria; bocas cheias de dentes, hienas que nos observam sempre sorridentes, sempre confiantes; a raposa observando os cordeiros. Deus, esse calor me deixa mal humorado.

Quase onze horas. Nenhuma linha escrita, nenhuma palavra lida. Idéias circundavam minha cabeça, urubus cercando a carniça. As pessoas me olham e comentam que deixei meu humor em casa, esquecido na gaveta das meias. Sorrio. Olhos se cruzam, se encaram. Silêncio.
- Hoje é dia de feijoada, não vão esquecer hein? – anunciava o mais faminto, convidativo. Todos nos entreolhamos sorridentes, podíamos sentir o cheiro do torresmo, da língua, do molho com pimenta.- É nóis! – Confirmava o rapaz da máquina de xérox.

Meio dia em ponto o comboio foi à Padaria do Campos. As mesas estavam tingidas de gotas negras e restos de carne mordida. Sentamos os doze em três mesas que foram juntadas, improvisadas, perto de um ventilador que tinha apenas dois pedaços da hélice.

- São oito cumbucas de feijuca, mais sete tubaínas... – o chefe Coruja fez o pedido.
As moças planejavam como iam dividir o prato, se abanavam e se divertiam com os olhares maliciosos dos homens que observavam analiticamente as gotas de suor que surgiam nos pescoços finos e intocáveis como corrimão de ônibus; agendam programas para o final da semana com o arquivista, o pessoal da seção de esportes e o Chefe Coruja, que só vai comparecer após deixar a esposa e as filhas na casa da cunhada. Eu sentia minhas costas suadas e o cabelo molhado. Encarava o ventilador de dois dentes que pareciam sorrir para mim, inútil, objeto de mera decoração.

Chegaram os potes de barro fumegante, uma travessa de arroz, couve, pastéis, torresmo – o prato do dia chega sempre mais rápido; as tubaínas já estavam esquentando nos copos.
O colunista de esportes antes mesmo da primeira garfada já suava torrencialmente; ninguém o encarava temendo testemunhar a queda livre de algumas gotas de suor no prato de comida, que fatalmente terminariam em sua boca, misturadas com o arroz e o feijão.

- Domingão tem futebol lá no Ibira. Podemos contar com você? – perguntou me encarando. Como por hábito sorri. Sem motivo algum. Não sabia o que responder. Não queria jogar nada. Eu queria terminar o que eu comecei: quero escrever as três estrofes. Embora com esse calor, eu sei que vai ser difícil. Deus, como eu fico mal humorado no calor...

- Mas é claro que ele vai! – o arquivista respondeu por mim. – É o nosso melhor lateral direito! Tem que ir! – gritou alguém no fundo da mesa. Houve um movimento na mesa, os homens olhando para mim, mastigando de boca aberta, espantados com a minha confirmação demorada, é claro que eu ia. Eu sempre fui e sempre irei. Não era discutível e por isso não seria mais assunto.

Senti algo subir pela minha garganta, as gotas de suor cada vez mais geladas escorrendo pelas minhas têmporas. Será que tinha um toucinho estragado na feijoada, seria o lombo, a lingüiça, a tubaína? Uma revolta interna. Algo não quer se conformar com todo isso, essa toalha de plástico furada por bitucas de cigarro, frontes reluzentes e sorrisos manchados com pedaços de feijão preto. Está vindo cada vez mais perto da minha garganta, chegando na boca, algo inesperado, um grito contido. Não poderia simplesmente explodir, sujar tudo com meu inconformismo mudo. Não naquele calor, não ali na padaria, não a feijoada, é o calor. Comecei a me sentir fraco, cansado de ouvir as pessoas decidindo meu final de semana. Não quero mais isso. Senti um gosto estranho na minha boca, palavra diferente. Preciso falar algo. Não posso deixar que comandem minha vida com a facilidade que levam o garfo com porco e farofa à boca. Não quero sumir como o gelo no copo sujo, metade cheio de tubaína. Eles precisam ouvir minha voz, minha vontade. Tomei coragem; mastiguei tudo o que tinha para mastigar, respirei fundo, abri a boca, articulei alguns sons, me olharam furtivamente, na expectativa expectorante do simples abrir a boca e o som surdo da voz. Agora é a minha chance, encarei as mulheres, o Chefe Coruja e o rapaz na ponta da mesa. Engoli seco e sorri. Como sempre, me faltam palavras.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Primeira Estação

Os domingos nos arredores das ruas cinzentas do MASP são agitados, infestados por barracas de madeira velha, cobertas por plástico azul, roxo ou índigo; nelas vende-se toda sorte de objetos inutilizáveis por senhoras de riso simpático, amarelado pelo cigarro. "A gente fuma para passar o tempo", dizem elas com seus sotaques indecifráveis, de mãe e avó. Mas se esquecem de que o tempo passa a todo instante, com ou sem cigarro, naturalmente pinta-lhe os dentes, os dedos, modifica a textura da pele, a voz, tira sempre um pouco mais do que deveria, com ou sem o cigarrinho de todo dia.

Passo por elas e por senhores barbados de cabelo branco, vendendo móbiles, vestindo camisetas com um rosto com feições dolorosamente messiânicas e boina de guerrilheiro, aproveitam toda oportunidade que tem para falar de umas idéias irreconhecíveis, tortas e mal lembradas de uns senhores chamados Trotski e Lênin. Falam delas com um sorriso estranho e brilho nos olhos estrábicos. Sussurram para si mesmos: um dia eles hão de encarnar nesse Brasil, encarnam sim. A bandeira do Brasil será vermelha como a cor da camisa do Che...

Entro no parque Trianon pela entrada dos fundos, escondido do burburinho e dos vendedores de tabuletas indígenas. Não tem escapatória: aos domingos este recanto da paulista se torna o Embu das Artes.

Caminho entre a sombra das árvores e o cheiro de ar puro que meu cérebro mal consegue identificar. Seguindo por esquerdas e direitas encontrei a estatua de Fauno, esculpida por Vitor Brecheret. Os braços longos tocando os próprios ombros, o olhar de pedra perfurando meus próprios olhos hipnotizou-me por um instante. Será que este lugar, este ponto em que milhões de pessoas pisam com suas solas sujas de chiclete e merda de poodle seria um dos pontos sagrados para receber a visita desse Deus da natureza. Se eu recebesse sua visita conseguiria escrever meu poema? Mas que peles sacrificaria, já que nada é de graça neste mundo: A minha? O Boris?

Ainda em busca de algo inominado, deparei-me com a estátua de Aretuza. “Ela representa o que eu procuro: a fonte, a vida, a água”, pensei enquanto sentava num banco de cimento bem em frente a ela.

- Gostosa, né? – perguntou a voz rouca de um sujeito que parecia ter vívido toda sua existência entre essas árvores e que fumava guimbas de cigarro deixadas pelos cantos – tenho certeza, não sei porque, mas ele prefere as sujas de batom.

Ignorei a pergunta que cheirava tresvario, tal qual seu hálito.

- Ei – desferiu um tapa no meu ombro – to falando contigo rapá!

Olhei-o assustado e meneei a cabeça negativamente: “não sei... não sei...” respondi.

- Essa dona me lembra a Maristela. Ah, Maristela, que saudades. Se lembra da Maristela, rapá?

- Não-. Respondi, fingindo naturalidade.

- Essa ae é mais gostosa que ela. Mas as duas são boas – abria a boca sem dentes enquanto encarava a estátua.

Eu olhava ao meu redor, tentando captar no ar a melhor hora para fugir e deixar esse homem sozinho com a estátua da deusa.

- Você sabe que a Maristela até brincava que era a reencarnação da Aretuza. Eu falava que não, ela tinha um fogo digno de Afrodite, isso sim. – ria uma risada rouca, monstruosa, retumbante. – Tem certeza que não lembra da Maristela?

Balancei a cabeça negativamente, impressionado com as palavras recém proferidas por aquele sujeito sujo e que tinha mais folha no corpo do que as árvores ao seu redor. Achei que delirava por uns instantes.

- Hoje até que está tranqüilo por aqui. Vira e mexe tem aqueles bolivianos fedidos vendendo ervinha como se tivessem no país deles. Não suporto isso! Sempre que vejo um, já dou logo um apavoro. – me dizia aguardando aprovação, que eu fazia questão de prontamente garantir balançando a cabeça positivamente.

- Sabe, meu chapa. A Maristela antes de partir de volta para o outro mundo – suspirou e ficou em silêncio por uns instantes, contendo lágrimas que insistiam em fazer seus olhos reluzir – Foi o domingo mais triste da minha vida. Sempre disse que morrer no domingo era sacanagem, mas ela queria me sacanear mesmo: bateu as botas num domingo, ao meio dia. É mole? Então, ela falava que queria flores em tudo quanto é canto, até o vestido que ela tava usando era florido. Ela adorava umas flores roxas, nem sei o nome. Engraçado como as mulheres gostam dessas coisas, mais do que sapatos. Enchi tudo de flores, joguei flor até no esgoto. Mais engraçado ainda é que na hora de dizer algumas palavras em homenagem a falecida não me veio. Nem um arroto. Só consegui recitar aquele poema do Basho. No tanque morto, o ruído de uma rã que mergulha. Sabe? Conhece esse? Aquele foi um domingo complicado – sorria encarando os olhos de concreto da Aretuza, que parecia sorrir para mim.
Fiquei imóvel. Atônito. Não sabia se era apenas impressão, auto-sugestão ou qualquer baboseira desse tipo. Aquele morador da rua recitou Basho! Olhei para a figura esculpida a minha frente. Ela sorria para mim, do meu preconceito de classe média que julga pelo cheiro e quantidade de dentes que se tem na boca. Olho para onde estava o sujeito, um pouco envergonhado de mim mesmo e das palavras que não proferi. Ele não estava mais lá. Uma folha vermelha ocupava o seu lugar, exalando o mesmo cheiro de lixo que o homem exalava. Aretuza agora me encarava séria, impávida, tal qual a idéia inicial do artista. Acho que o parque do Trianon, nos domingos de primavera tem dessas coisas inexplicáveis. Continuei sentado no meu banco de concreto por mais algumas horas e voltei para casa com um sorriso idiota no rosto.