quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Duas Luas - Seis

A pilha de papel em minha mesa começava a adquirir um magnetismo que, assim como a gravidade, atraia minha cabeça para sua superfície lisa preenchida com tinta de impressão a laser.

Sono.

Sono, sono, sono, sono.

Sono e uma garota de cabelo azul chamada Akari Luna em minha casa.

– Problemas com sono? – a voz inicia em um eco distante, mas se aproxima rapidamente quando, com toda a força permitida a mim naquele instante, levanto minha cabeça e ergo minhas pesadas pálpebras. – Senhor Eduardo?

Eu te conheço? Não tenho forças para perguntar, somente para processar uma série de informações que percorrem caoticamente minha cabeça. Esse rapaz é...

Quando o processo é finalizado e o resultado retornado para minha consciência, percebo o quão ferrado estava. Era o filho do dono. O diretor, o mandante, o cara que ninguém nunca tinha visto e nem queria ver. Na minha mesa, de frente para meu corpo sonolento e desgraçado, resultado de uma noite de pouco sono.

Ótimo. Excelente.

Fantástico. Me desculpe pela minha incompetência que gerou a honra de sua descida imperial do último andar ao que eu fico. Movimentando os olhos vejo que todos em volta, dentro do ângulo de visão, me olham, ou melhor, olham para ELE, espantados.

– S-sim – reforço com um meneio de cabeça.

Tento me endireitar na cadeira.

– Me desculpe, senhor...

– Não precisa – respondeu o jovem rapaz abrindo um sorriso tranqüilo. Sua postura impecável e seu mais novo sorriso me trouxeram apenas uma palavra em mente: Artificial.

Mais artificial do que a planta de plástico que serve de cinzeiro no saguão do prédio. Mais artificial que o sorriso que eu devolvo pra ele parecendo um idiota completo.

– O senhor faz um excelente trabalho e fica até horários incríveis apenas para manter os relatórios em dia – disse.

HEH?! C-c-como ele pode saber de tantas coisas? O filho do dono fica me observando de perto?

Engoli seco.

Perguntei-me a quanto tempo ele me observa. Hoje mesmo ele pareceu brotar por debaixo dos pisos do escritório vindo freneticamente falar comigo. Minhas conversas com Yumei foram pelo celular, mas era suficiente para as câmeras me flagrarem conversando com...

Não. Não tinha como eles descobrirem por que eu estava lá. Mesmo assim...

Mesmo assim, para alguém da posição dele saber o que alguém da minha posição que supera – em poucos pontos – a da mulher da copa, faz dentro da empresa é um choque.

As expectativas de que meu cargo seria bom para passar despercebido foi-se pelo ralo. Imaginei o que mais ele saberia, das minhas pequenas escapadas para os arquivos mais antigos da empresa.

Outra camada seca passou pela minha garganta.

– O-obrigado, senhor.

– Disponha – respondeu inabalável mantendo seu sorriso propaganda. – Senhor Eduardo, se está cansado, pode tirar o dia de folga – disse estendendo um dos braços no sentido dos elevadores. – Amanhã você pode continuar com isso. E se há qualquer coisa em que eu possa ajudá-lo, por favor, não hesite. Minha sala está sempre aberta.

Virou-se e partiu.

Suspeito.

Muito suspeito.

Incrivelmente suspeito.

Tão suspeito que me leva a suspeitar da suspeição.

Antes de tudo isso... Onde foi que eu vi o rosto dele. Acredito que essa tenha sido a primeira vez que todos do prédio viram seu rosto. Nunca antes, que eu soubesse através da minha pequena investigação, ele havia descido anteriormente para falar com qualquer funcionário. Tudo era feito através de seu assessor.

Espera... Então por que eu?

Arght. Minhas suspeitas coçam mais que cair e rolar em cima de urtiga apenas de sunga.

Coçando minha cabeça e me levantando, aceitando a oferta de voltar para casa, recordo-me de onde tinha visto seu rosto.

Foi há mais de vinte anos atrás, quando a internet ainda dava os primeiros passos para o acesso público e a informação que nela circulava era extremamente limitada. A foto dele saiu em uma revista de ciências tão obscura que foi um milagre eu ter encontrado uma cópia dela.

Não era uma coluna muito grande, mesmo porque a revista falava de coisas mais absurdas para a época, como óvnis, clonagem, espers e afins; por esse motivo nunca chegou na terceira edição. Na coluna dele falava sobre prolongamento da vida, estudos de drogas que aumentavam a longevidade das pessoas e...

A foto.

A foto era ele.

Não mais novo.

Nem mais velho.

Ele. O filho do dono da empresa... exatamente igual ao seu pai, o homem da foto.

O que diabos estava acontecendo...?