quarta-feira, 18 de abril de 2012

Aniversário


Distraído em minha leitura, desligado do mundo em minha volta, não reparei a presença de meu pai no cômodo.
– Feliz aniversário! – exclamou ao passar da porta.
Levantei os olhos do livro e o olhei confuso.
– É aniversário de quem?
– O seu, ué! – disse erguendo uma sobrancelha com a feição de quem ouviu um atentado absurdo ao senso comum.
Olhei em volta, não havia mais ninguém além de mim e de meu pai. Lembrei-me então que nem irmão tinha. Logicamente a única pessoa a quem ele podia estar se dirigindo era eu. Ainda sem compreender, retirado bruscamente pelo reino fantasioso da literatura, pisquei algumas vezes encarando-o.
– Obrigado... – respondi incerto. – Hoje é meu aniversário.
– Claro que é! Como você pode fazer uma pergunta dessas?! – estava ficando preocupado com minha reação letárgica.
– Oh!
Então levantei-me da poltrona e me aproximei do calendário que estava pendurado na parede. Com uma caneta risquei a data para me lembrar.
Como se fosse uma data importante.
Como se fosse a data de um evento único.
Pelo menos deveria ser para mim.
Mais um ano se completava. Mais próximo da inevitabilidade nefasta do fim da minha vida. Prometi que esse seria um ano diferente. Prometi que seria um ano de novas realizações e novas esperanças. Mas no fim eu sabia que seria apenas outro ano.
Mais um ano longe da vida.
Menos um ano para viver.
Não estava ficando velho, apenas morrendo... ou o que havia ainda para morrer dentro de mim.
– Obrigado – disse voltando-me a poltrona, sentando e escaneando com o dedo sobre as páginas amareladas o velho marcador de papelão.
Queria descansar, mas teria que esperar pelo ano seguinte. Quem sabe não seria meu último...
Mas por enquanto, pensei olhando as costas de meu pai saindo do quarto, deixe-me viver só mais um pouco, apenas para ler só mais alguns livros.
Cercando-me, pilhas e pilhas de livros erguiam-se do chão ao teto, recheando os quatro cantos do cômodo com as mais diversas obras de todos os idiomas, quase não havia espaço para se locomover. Uma velha poltrona surrada de couro, um pedaço de parede vazia para pendurar lembretes e calendários, e uma janela coberta por uma persiana branca, eram as únicas coisas que se isolavam daquela infinidade de universos compostos por palavras desconhecidas.
– Feliz aniversário – a voz de seu pai ecoou em sua mente enquanto abria o livro.
– Só mais um pouco – sussurrei para todos em minha volta, autores e autoras que viveram e ainda vivem em suas obras.
Voltei a percorrer as palavras com meus olhos atentos.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Folha em branco


A folha em branco me encarava entediada e vazia, diferente de minha cabeça. Ideias vinham, lembranças voltavam, imagens surgiam, tudo em um tufão aleatório que saltava no fundo da minha cabeça. De braços trêmulos com a caneta entre os dedos, ora batia a ponta dela sobre a escrivaninha, ora em minha testa, quando cansava dessa seção masoquista criativa, mordia a ponta com a voracidade de um cão.
Palavras que não surgiam, sussurradas ao vento do esquecimento.
Não aguentando mais a folha de linhas vazias que pareciam ondular sob meus olhos desesperados, levantei-me. Acendi um cigarro e fui para a sacada, uma antiga lei silenciosa criada naquele apartamento que tornara-se um habito.
Caminhando pela rua, as pessoas iam em busca de seus objetivos, para seus trabalhos, casas ou qualquer lugar, rumo ao incerto que o cotidiano tinha a lhes oferecer. Pelo menos eles tinham suas mentes focadas e seus vícios diários, locais para onde podiam correr para viver.
Viver a vida sem compreender o que o cerca a todo e qualquer momento. A simplicidade, o céu azul, o clima, a brisa, a vida.
Ouço a campainha tocar, ninguém havia tocado o interfone. Seria o vizinho? Nunca o conheci muito bem, somente de cumprimento ocasional dentro do elevador.
Abro a porta e me deparo com a mulher mais linda que já vi na vida. Ela estava sorrindo gentilmente com a cabeça levemente inclinada para o lado. No mesmo instante o caos que circulava incessantemente em minha mente estagnara. Meu corpo agia por si só, instintivamente e furiosamente.
Eu a abracei com todas as minhas forças. Senti as lágrimas quentes escorrerem de meus olhos. Inalei seu perfume, senti seus cabelos lisos tocarem meu rosto como a mais fina e pura ceda, meus braços e minhas mãos a apertavam para que nunca a deixassem sair. Meu corpo junto ao dela se perdia na certeza de sua forma.
– O que foi, amor? – sussurrou em minha orelha, sua voz penetrava por minhas orelhas e se fundia em meu sangue. – O que aconteceu?
Adrenalina do desespero.
Desespero do medo.
Coração disparado de felicidade.
Minha mente voltava a se mexer por passos lentos, o caos petrificado pelo choque começava a virar pó ao vento que soprava, trazendo consigo a certeza de que ainda estava são.
Lágrimas de tristeza.
– Eu pensei que...
– Ora, você sempre foi exagerado – disse ainda em um sussurro gentil, respondendo ao seu abraço ela acariciou o cabelo dele. – Você sabe que eu sempre estarei ao seu lado.
– Mas eu...
Queria falar, queria dizer cada palavra que vinha em minha mente tão rápido quanto uma bala. Porém, como fazê-lo quando nem consigo colocar sequer uma frase em um maldito pedaço de papel? Busquei forças, organizar as ideias que pareciam borbulhar em meio ao oceano somente para se dissolver em sua imensidão. Queria pegá-las como água em punhos cerrados.
Entretanto, antes que pudesse dizer qualquer coisa, já era tarde. Ela havia sumido. Só no corredor de entrada do meu apartamento.
Após um longo tempo parado, movi meu corpo de volta para dentro, sentei-me a escrivaninha. Soltei um longo suspiro.
Talvez eu esteja realmente louco.
Olhei o papel que não estava mais branco.
Eu te amo. Escrito nas letras que tanto conhecia, sorri.
Logo abaixo, com minha própria letra, meus próprios sentimentos eu respondi:
Eu também te amo.
Dobrei o papel e coloquei dentro do envelope.

Não havia discurso em um funeral. Não haviam sorrisos que ela tanto amava. Apenas lágrimas de despedidas, tristeza e consolação. Alguns mantinham-se firmes, outros, sucumbiam a depressão palpável do ambiente. Eu não conseguia mais chorar. Sabia que não podia deixá-la partir com um rosto triste.
Ao seu lado, dentro do caixão, coloquei a carta que ambos escrevemos. Não precisávamos de mais palavras do que aquelas que usamos. A folha em branco tingida para sempre com o mais simples e profundo de nossos sentimentos. Minha esposa sabia, eu sabia. Nós sabíamos. Por mais que o tempo que tivemos juntos tenha sido curto. Aquele tempo será eterno.
Porque o tempo havia parado.
Porque vivemos a eternidade.
A eternidade das lembranças de felicidade que nunca esquecemos.
Inclinei-me ao seu lado e sussurrei em seu ouvido:
– Eu estarei sempre ao seu lado.