sexta-feira, 6 de julho de 2012

A Dançarina da Madrguada


Quando a sombra da noite cobriu o sono das pessoas, a garota pousou descalça sobre o asfalto empoeirado e cinzento da cidade. Como fazia todos os dias ela passou a dançar, a Lua e as estrelas eram as únicas espectadoras. Contudo, aquela noite havia mais uma pessoa a vê-la, alheia a sua presença, saltava sobre as projeções luminosas dos postes. Seus cabelos prateados e vestido branco acompanhavam o suave movimento de sua dança.
                Hipnotizado pela beleza celestial da garota, não pude desviar meu olhar, mal sabia se estava respirando ou havia me esquecido. Pensava que em um suspiro, em uma única e simples piscada, poderia perder aquele instante para sempre.
                Quando nossos olhares se cruzaram? Seriam segundos, minutos ou horas? Mas foi naquele instante que eu vi seu rosto tão alvo quanto porcelana, um sorriso meigo e gentil se formou em seus lábios delicados. A garota acenou, como se já houvesse, há muito, percebido a minha presença ali, na janela da minha casa. Enormes asas de prata se abriram de suas costas, reluziam uma aura branca angelical, penetrando a noite fria com luz vívida e calorosa.
                Um piscar de olhos.
                Foi tudo que precisou, e assim que os abri vi a garota subir aos céus, as penas brancas ondulavam sobre o ar noturno deixando rastros prateados.
                Desci correndo as escadas, desesperado, mas era tarde. A única coisa que havia sobrado nas ruas era a solidão acompanhada da madrugada.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Aniversário


Distraído em minha leitura, desligado do mundo em minha volta, não reparei a presença de meu pai no cômodo.
– Feliz aniversário! – exclamou ao passar da porta.
Levantei os olhos do livro e o olhei confuso.
– É aniversário de quem?
– O seu, ué! – disse erguendo uma sobrancelha com a feição de quem ouviu um atentado absurdo ao senso comum.
Olhei em volta, não havia mais ninguém além de mim e de meu pai. Lembrei-me então que nem irmão tinha. Logicamente a única pessoa a quem ele podia estar se dirigindo era eu. Ainda sem compreender, retirado bruscamente pelo reino fantasioso da literatura, pisquei algumas vezes encarando-o.
– Obrigado... – respondi incerto. – Hoje é meu aniversário.
– Claro que é! Como você pode fazer uma pergunta dessas?! – estava ficando preocupado com minha reação letárgica.
– Oh!
Então levantei-me da poltrona e me aproximei do calendário que estava pendurado na parede. Com uma caneta risquei a data para me lembrar.
Como se fosse uma data importante.
Como se fosse a data de um evento único.
Pelo menos deveria ser para mim.
Mais um ano se completava. Mais próximo da inevitabilidade nefasta do fim da minha vida. Prometi que esse seria um ano diferente. Prometi que seria um ano de novas realizações e novas esperanças. Mas no fim eu sabia que seria apenas outro ano.
Mais um ano longe da vida.
Menos um ano para viver.
Não estava ficando velho, apenas morrendo... ou o que havia ainda para morrer dentro de mim.
– Obrigado – disse voltando-me a poltrona, sentando e escaneando com o dedo sobre as páginas amareladas o velho marcador de papelão.
Queria descansar, mas teria que esperar pelo ano seguinte. Quem sabe não seria meu último...
Mas por enquanto, pensei olhando as costas de meu pai saindo do quarto, deixe-me viver só mais um pouco, apenas para ler só mais alguns livros.
Cercando-me, pilhas e pilhas de livros erguiam-se do chão ao teto, recheando os quatro cantos do cômodo com as mais diversas obras de todos os idiomas, quase não havia espaço para se locomover. Uma velha poltrona surrada de couro, um pedaço de parede vazia para pendurar lembretes e calendários, e uma janela coberta por uma persiana branca, eram as únicas coisas que se isolavam daquela infinidade de universos compostos por palavras desconhecidas.
– Feliz aniversário – a voz de seu pai ecoou em sua mente enquanto abria o livro.
– Só mais um pouco – sussurrei para todos em minha volta, autores e autoras que viveram e ainda vivem em suas obras.
Voltei a percorrer as palavras com meus olhos atentos.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Folha em branco


A folha em branco me encarava entediada e vazia, diferente de minha cabeça. Ideias vinham, lembranças voltavam, imagens surgiam, tudo em um tufão aleatório que saltava no fundo da minha cabeça. De braços trêmulos com a caneta entre os dedos, ora batia a ponta dela sobre a escrivaninha, ora em minha testa, quando cansava dessa seção masoquista criativa, mordia a ponta com a voracidade de um cão.
Palavras que não surgiam, sussurradas ao vento do esquecimento.
Não aguentando mais a folha de linhas vazias que pareciam ondular sob meus olhos desesperados, levantei-me. Acendi um cigarro e fui para a sacada, uma antiga lei silenciosa criada naquele apartamento que tornara-se um habito.
Caminhando pela rua, as pessoas iam em busca de seus objetivos, para seus trabalhos, casas ou qualquer lugar, rumo ao incerto que o cotidiano tinha a lhes oferecer. Pelo menos eles tinham suas mentes focadas e seus vícios diários, locais para onde podiam correr para viver.
Viver a vida sem compreender o que o cerca a todo e qualquer momento. A simplicidade, o céu azul, o clima, a brisa, a vida.
Ouço a campainha tocar, ninguém havia tocado o interfone. Seria o vizinho? Nunca o conheci muito bem, somente de cumprimento ocasional dentro do elevador.
Abro a porta e me deparo com a mulher mais linda que já vi na vida. Ela estava sorrindo gentilmente com a cabeça levemente inclinada para o lado. No mesmo instante o caos que circulava incessantemente em minha mente estagnara. Meu corpo agia por si só, instintivamente e furiosamente.
Eu a abracei com todas as minhas forças. Senti as lágrimas quentes escorrerem de meus olhos. Inalei seu perfume, senti seus cabelos lisos tocarem meu rosto como a mais fina e pura ceda, meus braços e minhas mãos a apertavam para que nunca a deixassem sair. Meu corpo junto ao dela se perdia na certeza de sua forma.
– O que foi, amor? – sussurrou em minha orelha, sua voz penetrava por minhas orelhas e se fundia em meu sangue. – O que aconteceu?
Adrenalina do desespero.
Desespero do medo.
Coração disparado de felicidade.
Minha mente voltava a se mexer por passos lentos, o caos petrificado pelo choque começava a virar pó ao vento que soprava, trazendo consigo a certeza de que ainda estava são.
Lágrimas de tristeza.
– Eu pensei que...
– Ora, você sempre foi exagerado – disse ainda em um sussurro gentil, respondendo ao seu abraço ela acariciou o cabelo dele. – Você sabe que eu sempre estarei ao seu lado.
– Mas eu...
Queria falar, queria dizer cada palavra que vinha em minha mente tão rápido quanto uma bala. Porém, como fazê-lo quando nem consigo colocar sequer uma frase em um maldito pedaço de papel? Busquei forças, organizar as ideias que pareciam borbulhar em meio ao oceano somente para se dissolver em sua imensidão. Queria pegá-las como água em punhos cerrados.
Entretanto, antes que pudesse dizer qualquer coisa, já era tarde. Ela havia sumido. Só no corredor de entrada do meu apartamento.
Após um longo tempo parado, movi meu corpo de volta para dentro, sentei-me a escrivaninha. Soltei um longo suspiro.
Talvez eu esteja realmente louco.
Olhei o papel que não estava mais branco.
Eu te amo. Escrito nas letras que tanto conhecia, sorri.
Logo abaixo, com minha própria letra, meus próprios sentimentos eu respondi:
Eu também te amo.
Dobrei o papel e coloquei dentro do envelope.

Não havia discurso em um funeral. Não haviam sorrisos que ela tanto amava. Apenas lágrimas de despedidas, tristeza e consolação. Alguns mantinham-se firmes, outros, sucumbiam a depressão palpável do ambiente. Eu não conseguia mais chorar. Sabia que não podia deixá-la partir com um rosto triste.
Ao seu lado, dentro do caixão, coloquei a carta que ambos escrevemos. Não precisávamos de mais palavras do que aquelas que usamos. A folha em branco tingida para sempre com o mais simples e profundo de nossos sentimentos. Minha esposa sabia, eu sabia. Nós sabíamos. Por mais que o tempo que tivemos juntos tenha sido curto. Aquele tempo será eterno.
Porque o tempo havia parado.
Porque vivemos a eternidade.
A eternidade das lembranças de felicidade que nunca esquecemos.
Inclinei-me ao seu lado e sussurrei em seu ouvido:
– Eu estarei sempre ao seu lado.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Causa e Efeito

1 – Ônibus:
Por descer apenas no ponto final, esperou até a última parada do ônibus para passar a catraca. Restando apenas ele e uma família que discutia no fundo do ônibus, ignorou-os passando seu cartão pelo leitor da catraca.
– Aqui é o final, moça! – gritou o motorista, ansioso em levar o ônibus de volta a garagem.
– Espera seu motorista, tamo tentando encontra o celulá aqui que caiu! – a mulher disse da última fileira de assentos.
Um de seus cinco filhos, o mais velho, alheio a presença dele, ficou na porta ignorando seus pedidos de licença. Olhava pra mãe dando risada, acreditando que, ficando parado bem no meio da porta, estaria atrasando o motorista.
Cansado de pedir por licença, em sua fúria exasperada, ele chutou o moleque com tamanha força que faria um jogador profissional de futebol sentir inveja. O chute, ou bicuda, no meio da bunda do elemento era tanta que faria todos da barreira em frente ao gol se dissipar, o goleiro provavelmente já teria fugido no meio do percurso da bola.
Caindo sobre o chão, o moleque desacordado – ou talvez morto em prol da defesa de seu time covarde diante o time rival, talvez se arrependendo de não ter corrido da bola como os outros o fizeram – se estendia com a face colada ao chão, seu corpo apenas um amontoado de carne que acaba de ser amaciada por um forte impacto da sola de um sapato social de 50 reais.

2 – 3 horas antes.
– O seu merda! – vociferou o homem a sua frente. – Você chama isso aqui de trabalho bem feito?!
Naquele instante, como uma ideia que aterrissa arrebatadoramente sobre o consciente, ele teve um vislumbre. Imaginou se aquele homem a sua frente, seu chefe há mais de 10 anos, teria dito as mesmas palavras que gostava tanto de usar com os outros, para o médico que acabara de realizar seu parto.
– O seu merda! – gritava para o médico que o tinha nas mãos. – Você chama isso aqui de trabalho bem feito?!
Com a cena vívida em sua cabeça, ele não pode conter uma pequena risada?
– Tá rindo do que? – enfurecido, seu chefe berrava a beira de vomitar seus pulmões. – Você trabalha a quanto tempo aqui? Vinte anos?! E eu sou seu chefe a dez! Por que será, né? Um merda feito você que faz um trabalho de merda, não podia ser chefe nunca!.
O fato de ser seu chefe, nada tinha a ver com sua requintada educação em tratar os subordinados, mas sim única e exclusivamente pelo fato de ser um grande chupador de saco. Ele chupava tanto o saco dos superiores que, se fosse vendido nas sex shops, seria de longe o produto mais requisitado por todos os homens, e possivelmente para algumas mulheres.
Ele se encolheu na cadeira cerrando os olhos, não por medo, mas pelo fato de que as gotículas que eram expelidas junto as palavras dele caiam sobre ele como uma forte garoa.
– Sai da minha frente! Vaza daqui! Volta pra casa que você não presta pra fazer merda nenhuma!
Depois de ver seu relógio, ele se levantou pegando suas coisas. Pegaria o ônibus cedo, vazio e tranquilo, com um pouco de sorte chegaria até antes do almoço servido na padaria perto de sua casa.

3 – Direção defensiva
Pisando fundo, o rapaz exigia tanto de seu carro que os cavalos presos dentro dele berravam, desesperados em tentar fugir daquele condutor insano. Acelerando, brecando, ultrapassando, acelerando, pisando, gritando, o carro derramava lágrimas de fumaça implorando por uma morte rápida, uma vez que sobreviver era um sonho antigo e inalcançável.
– Filho da puta! – gritou de dentro do carro, com a força de um boxeador, o rapaz socava a buzina, mas rouca de tanto uso, se negou a gritar, soltando apenas um sopro, um vômito. – Dá a seta seu filho da puta! Tá com essa porra de vareta atolada no cu?! Então para esse carro e fica rebolando nela, seu cuzão!
Ultrapassando o carro a quem dirigia seus calorosos elogios, deu de cara com outro logo a frente.
– Puta que o paril! – desta vez, descontrolado, gritou pra fora da janela. – Hoje é dia da AACD aprender a dirigir! Vai pra puta que o paril!
Mais uma vez desviou do carro, fez isso tantas vezes ao longo de sua vida, que acreditava ser um mestre na direção, ninguém era melhor que ele, na verdade, todos deviam deixar seus carros em casa para que pudesse exibir sua mais alta habilidade automobilística. Emparelhou ao lado do carro e olhou pela janela.

4 – Trauma
Em seus 18 anos, com habilitação que acabara de tirar, a garota dirigia com todo o cuidado do mundo, analisando meticulosamente cada movimento e postura que aprendeu durante as aulas de direção. Atrás de seu carro, um outro acelerava e parava como um touro enfurecido que se preparava para a estocada na bunda do toureiro. Ignorando-o e prestando atenção a rua e a sua velocidade, a garota prosseguiu.
Quando o carro que estava atrás dela finalmente saiu e emparelhou ao lado do acento passageiro vazio, a garota tentou ignorar as palavras que eram fulminadas a ela.
– O sua puta gostosa! – sua voz era tão alta e clara que um surdo podia ouvi-lo do outro lado do planeta, enterrado em uma base secreta militar. – Vai pilotar fogão e deixa eu engatar meu pau na tua buceta!
Buscando abrigo por trás do volante, a garota se encolheu, lágrimas brotavam de seus olhos e seus lábios tremiam. Mas ainda assim ignorou o homem, continuando a seguir o caminho de volta a sua casa.
A garota também ignorou o barulho que se sucedeu em seguida. O rapaz que segundos antes estava gritando obscenidades dignas de filmes pornô que buscavam saciar o mais sombrio dos fetiches, perdeu o controle de seu carro, fazendo-o com que fosse arremessado pouco a frente de um ônibus que estava parado.

5 – Música clássica erudita
– Hoje é dia de um funkzinho e dar um traço em umas menininhas!
Olhando por cima do jornal que lia, o cobrador olhava desinteressado para o que o motorista falava, sem se importar com o fato de que fazia dos ouvidos dos passageiros, um banheiro químico no final de uma festa rave.
Soltando um longo suspiro, o cobrador agradecia a todas divindades mitológicas por seu turno estar acabando. Ignorando a fila de passageiros que se formava aguardando que ele recebesse o dinheiro e libera-se a catraca, voltou-se novamente ao seu jornal.
Por que esses imbecis não comprar a porra de um bilhete único? É tão fácil, até um jegue consegue fazer isso.
Quando uma mulher chamou sua atenção, por fim e já irritado, dobrou o jornal e recebeu o dinheiro. Em sua mente, amaldiçoava aquele motorista que acreditava que funk era música clássica, que era a origem de todas as músicas, a melhor do mundo, e por isso deveria ser tema principal de todas as maiores orquestras. Para o motorista, o funk deveria ser imortalizado, acima de qualquer “sonzinho de frutinha, feito aquelas barulheiras que chamam de música clássica. O que tem de música clássica nessa porcaria? Só barulho, funk sim é música!” Lembrou-se do que o motorista tinha falado horas antes, no meio de seu turno.

6 – Efeito
Ignorando a mulher, mãe dos quatro filhos – o quinto estava estatelado no asfalto – que xingava-o de tantas formas diferentes que para compreender a todos seria necessário um dicionário especializado tão grosso quanto a bíblia e o corão juntos, ele saiu andando mostrando o dedo do meio para ela.
Despercebido, não reparou no carro desgovernado que vinha em sua direção. O automóvel chocou-se contra ele, o arremessando no ar. Seu dedo girava em sentido espiralado tão rápido quanto uma furadeira elétrica de trinta mil rotações por segundo, uma habilidade com o dedo que causaria inveja nos atores pornô e despertaria o desejo mais selvagem das atrizes. Caindo no meio da rua após seu salto ornamental triplo, com cinquenta piruetas, dois mortais, cinco estrelas e com o giro frenético do dedo do meio, acabou por tornar-se companheiro de chão do moleque que tinha chutado a pouco.
O carro, não contente ao se chocar contra uma pessoa, deparou-se violentamente contra um poste. O rapaz que dirigia foi arremessado lateralmente, mas diferente do fim que o moleque e ele tomaram, o veloz voo que o rapaz iria tomar acabou interrompido pelo mesmo poste contra que seu carro havia se chocado. Os cavalos presos ao motor de segunda mão, haviam finalmente se libertado e estavam caídos no meio da avenida, no sentido contrário, causando uma série de colisões entre outros automóveis pegos despreparados por esse estouro da manada.
Puta que o paril! – gritou o motorista, mas ao olhar para trás, o cobrador já havia deixado o ônibus há muito tempo.
Levando as mãos a cabeça, o motorista ficou parado olhando a cena cataclísmica. Era a última ronda, queria levar o ônibus de volta a garagem e voltar para sua casa, tomar um banho, ensaiar uns passos, tudo para o show de funk que iria acontecer somente a noite. Tinha que ensaiar seus passos, isso era importante. Da última vez levou pra casa duas mulheres que conheceu no show, fez tanto sexo que sentiu-se como um coelho no cio que tinha tomado dois comprimidos de viagra. O que o motorista não sabia era qual das duas mulheres tinha dado de presente a ele uma verruga no pênis.
Descendo do ônibus, decidiu esperar somente pela ajuda dos bombeiros e da ambulância.
A mãe dos filhos gritava na rua:
Bem feito! Bem feito! Deus castiga! Deus castiga! Tem que morrer mesmo seu desgraçado! Deus é pai! Deus é justiça! Tem que morrer mesmo seu desgraçado!
E repetia como uma vitrola quebrada cujo disco ficou desafinado após tanto uso descuidado. Com diferença que um disco riscado, quebrado, estourado, era menos irritante que a voz da mulher. Pelo menos eram o que os curiosos que se aglomeravam na cena diziam:
Cala a boca mulher! Já entendemo!
Vai pro inferno! Eu sou mãe de cinco filhos – dizia como se a quantidade de filhos servisse de desculpa.
Na verdade, se a mãe soubesse contar, restaram apenas quatro filhos, mas isso não fazia diferença para ela, já que estava ocupada de mais vociferando contra todos em volta.

7 – Trauma 2
A garota de 18 anos chega a sua casa após um dia estressante na faculdade e na rua. Sua mãe a recebe preocupada, lágrimas escorrendo por seu rosto.
O que foi, mãe? – pergunta a garota escondendo seus olhos inchados, resultado de momentos antes no transito.
Você não viu, filha? – disse a mãe da garota ainda apertando-a nos braços. – Aconteceu um acidente horrível na avenida que você passa. Foi agora a pouco... eu pensei que você tivesse envolvida.
A garota acolheu a mãe, dando-lhe tapinhas de consolo nas costas.
Não se preocupa, mãe – disse a filha após sua mãe se acalmar. – Eu não vou mais dirigir... eu desisto. Isso realmente não é pra mim.
Mas, por que, filha?
Só tem maluco dirigindo hoje em dia... a partir de amanhã eu vou voltar a andar de ônibus.
Sua mãe assentiu, aliviada por sua filha não estar envolvida no acidente. Em seguida a garota foi para seu quarto, abraçando-se a sua almofada, ela se encolheu e se pôs a chorar, traumatizada, nunca mais queria ficar atrás de um volante.

8 – Dia de cão
Deitado sobre o raio de Sol que cruzava aquele dia frio, o cãozinho observou todo o evento se desfazer em sua frente. Erguendo as orelhas quando a multidão de curiosos se formou, decidiu levantar-se. Era essa sua chance.
Abanando o rabo, aguardou ansiosamente para que as pessoas começassem a perder interesse no que viam. Quando o momento foi oportuno, ele deu umas latinhas e passou a dançar sobre suas duas patas. Caindo ao chão, ele encarava as pessoas que voltavam a atenção do sangue esparramado pelo asfalto, para o cãozinho fofinho vira-lata. O olhar do cãozinho era tão meigo que nem mesmo o mais hábil e desesperado mendigo conseguia o imitar. As pessoas faziam carinho nele.
Olha que cachorrinho mais lindo! – exclamou uma mulher.
Nossa, que dó dele! Como podem deixar ele assim, abandonado. Largado na rua. Tadinho – uma mulher balançava a cabeça em reprovação.
O cãozinho teve sorte, uma senhora jogou um pedaço de salgado para ele. Enquanto devorava sua refeição, todos o apreciavam como uma joia rara, ignorantes às sirenes que rondavam o local do acidente.
Oh! Vem cá, amiguinho! – um mendigo chamou pelo cãozinho que o obedeceu fielmente. Saltitando por um abraço de seu dono.
Todos que até então observavam o cãozinho, desviaram seus olhares ao mendigo. Enojados, eles viraram suas caras. Alguns continuavam a seguir seus caminhos, outros foram novamente atraídos pelo acidente, sedentos em ver os paramédicos agirem, outros, os que passaram a mão na cabeça do cãozinho, limpavam discretamente as mãos em suas roupas.
A perversão da curiosidade se espalhava como um vírus. Todas as pessoas se deleitavam com a desgraça alheia, como se toda a cena catastrófica servisse como um forte estimulante afrodisíaco para suas almas que se excitavam furiosamente com tudo aquilo.
Logo essas pessoas perderiam novamente o interesse.
Logo essas pessoas se esqueceriam do cãozinho e do mendigo.
Logo essas pessoas balançariam sua cabeça em reprovação, pesando: “essas pessoas de hoje, não tem jeito.” Outras pensariam: “Gente sem cuidado nenhum, aonde esse mundo vai parar?” Contudo no fundo, em uníssono, todos estariam suspirando aliviados dizendo: “Ainda bem que não foi comigo. Eu sou cuidadoso.”

9 – Fim do turno
No carro de bombeiros, o chefe de equipe suspirou profundamente. Faltava apenas quinze minutos para que seu turno acabasse quando recebeu o chamado. Um acidente trágico se desenrolara próximo ao departamento em que trabalhava.
Lamentou-se profundamente por aquele infortúnio. Era aniversário de sua filha. Não apenas tinha comprado um presente especial para ela, mas como também prometido que iria a sua festa. Dez anos, e nunca conseguiu participar de uma festa sequer, aquela seria a primeira em que iria. Tinha tudo preparado, planejado, revisado e checado, tanto quanto uma estratégia de invasão e resgate da SWAT. Mas nem todo planejamento é livre de acasos, e desta vez, para seu azar, o acaso ocorreu no único instante em que não poderia.
Estamos chegando – informou a todos do carro.
Vendo o local do acidente, o pior que já vira nos seus 35 anos de trabalho. Ele sorriu.
Está tudo bem – murmurou de si para si. – Afinal, é para salvar vidas que estou aqui.
Saiu do carro de bombeiros correndo para próximo dos paramédicos.
E toda a vida vale a pena ser salva – continuou em seus pensamentos, enquanto corria em direção ao que restara do carro do rapaz.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Duas Luas - Oito

Por onde as mãos de Akari deslizavam no ar, de suas unhas rastros de luz surgiam como lâminas de vento extremamente finas, dilacerando os vultos no saguão da empresa. Porém eles eram tantos que vez ou outra algum chegava perto dela deixando um profundo corte.

– Então os cortes de antes... – murmurei para mim mesmo olhando-a da entrada.

Sem saber lutar, não podia fazer nada naquela situação, em minha mão dentro do bolso eu apertava o canivete, preparado para o pior.

Os movimentos de Akari eram como uma dança suave e delicada, seus ferimentos pareciam pouco incomodá-la. Mesmo em meio a dança nas trevas, sua luz se apagava. Haviam mais sombras do que ela podia conter e não demorou para que algumas viessem em minha direção, sedentos por sangue – ou talvez por minha alma.

– Du!!! – Akari virou-se ao perceber que vinham em minha direção, mas era tarde de mais. Mesmo com seus movimentos rápidos de felino não era possível se proteger e me proteger ao mesmo tempo.


– Oho... seres mal educados... – a voz irônica que conhecia tão bem penetrou as trevas.

No instante seguinte um circulo luminescente cheio de entalhes surgiu a minha frente, de dentro dele feixes de luz cortaram a escuridão que tomava a sala, penetrando em todas as sombras.

– Yumei? – balbuciei.

– As almas daqueles sacrificados em troca da vida eterna são bastante inquietos – Yumei disse para ninguém em especial. – Não se pode culpá-los. É preciso reconhecer o território de outros... – virou-se para mim – Não é, Du?

Parado em frente a ela, permaneci em silêncio sem compreender. Então eu estava fazendo reconhecimento de território? Pensei.

– Quem é você – perguntou Akari no que pareceu um rosnado agressivo.

– Oho, acalme-se, não estou aqui para tirá-lo de você – disse Yumei com sarcasmo. – A lua não está aqui, sacerdotisa. Não mais.

Akari não pode esconder seu rosto de espanto. Aparentemente ela estava procurando pela lua há algum tempo naquela região. Descobrir que todos seus esforços foram em vão, principalmente após todos aqueles ferimentos, não era fácil.

– Ela estava aqui, mas um poder como o dela não pode ser controlado por um mago tão inferior como o dono desse lugar – disse passando por nós a passos vagarosos. – Após centenas de anos usando sua magia para sacrifícios, ninguém consegue manter a mesma energia.

– Você... é uma Magi...? – perguntou Akari de olhos tão arregalados quanto os meus na primeira vez que vi Yumei usar sua magia.

– E você é uma sacerdotisa – disse como se fosse algo óbvio. – Não se preocupe, eu só estou interessada em encontrar a lua, não quero usar seu poder.

Parou e virou-se para nós, seu olhar frio provocou um calafrio em minhas espinhas.

– No entanto, eu me preocupo com o garoto ao seu lado.

Eu e Akari nos entreolhamos, aquilo era novo para mim também. Nunca tinha ouvido algo do gênero vindo de Yumei.

– Du, leve a sacerdotisa para o escritório – virou-se novamente e voltou a andar em direção aos elevadores. – Eu tenho uma reunião com o dono dessa empresa. Infelizmente acredito que você seja demitido no processo – disse para mim olhando por cima do ombro, o canto de seu lábio levantado em ironia.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Duas Luas - Sete

– Oho – disse Yumei em um tom irônico do outro lado da linha – Então finalmente chegou o momento.

– Huh? – cocei a cabeça por cima do celular.

Cheguei em casa com dois pratos congelados que comprei no supermercado, mas Akari não estava em lugar algum. Não era de se espantar, ela devia ter seus próprios assuntos para resolver. Cocei a cabeça novamente com o pensamento.

Quais tipos de assuntos teria uma luz da Lua?

– Ainda está ai? – Yumei perguntou curiosa. – Kin?

– Já disse que não gosto desse apelido.

– Oh... Eduardo então?

– Acho que esse nome já não me é mais necessário.

– Então Kin será! – disse alegre, mais alegre que qualquer um deveria ficar com algo tão banal como aquele apelido. – Um nome é algo muito poderoso, Kin. Ele não apenas define uma pessoa como lhe da todo o poder concebido pelo nome. Aquele que não possui um nome, não possui uma identidade, sendo desconhecido pelos outros acaba desconhecido por si mesmo. De qualquer forma, esteja preparado para hoje a noite.

– O que vai fazer?

– Ora... é a noite em que os gatos e bruxas saem, não é? – mesmo não a vendo, podia enxergar sua imagem deitada sobre sua cama piscando um olho e sorrindo ao pronunciar tais palavras.

Antes que pudesse responder, ela já tinha desligado. Guardei o celular no bolso e esquentei meu prato. Passei o resto do dia lendo tranquilamente, sem qualquer sinal de Akari ou do chefe, filho do chefe, ou seja lá quem fosse.

Quando anoiteceu me preparei.

Uma coisa que nunca gostei é de armas. Armas atraem problemas, independente de você a carregar para proteção ou para agressão, somente o fato de estar carregando uma é o suficiente para atrair problemas. As pessoas olham para você de uma forma diferente, estranha, desconfiada. Sei que parte disso é psicológico, porém há uma grande parte que envolve a ligação entre os espíritos dos seres humanos. Alguns chamam de sexto sentido, algo que somente algumas pessoas possuem. Yumei, contudo, diz que todo ser humano possui um sexto sentido, a diferença que existem pessoas mais sensíveis, outras mais suscetíveis, outras que descobrem tardiamente na vida e outras que apenas o ignoram por medo. Talvez carregar uma arma escondida ative um fragmento esquecido desse sexto sentido. Essa é, pelo menos, a parte espiritual que vejo para os olhares desconfiados que as armas atraem.

Em todo caso, a única arma que tinha para me defender era um canivete de lâmina longa dobrável. Não sendo uma arma de fogo já me fazia feliz. Yumei havia me dado como proteção, disse que a lâmina foi feita com um material especial e que foi encantada por runas. De fato haviam muitos desenhos entalhados e emitiam um brilho estranho.

Guardei o canivete no bolso da minha jaqueta esperei a ligação no celular. Não seria a primeira vez que fazíamos isso, por isso já sabia a rotina. Meu celular tocou um pouco antes da meia noite, uma vez apenas e em seguida calou-se. Estava na hora.


O que encontrei foi muito estranho, a entrada do prédio em que trabalhava estava aberta, mesmo o horário de fechamento tendo passado há horas atrás, a entrada estava aberta como se estivesse de dia. As luzes estavam acessas, mas ninguém na recepção, nem mesmo um segurança. Olhei em volta, ninguém. Nem nas ruas, nem no prédio. Parecia haver entrado em um lugar isolado.

Ao entrar, sombras começaram a percorrer as paredes e gemidos ecoaram pelo grande salão.

– São espíritos que foram aprisionados nessa caixa – a voz de Akari surgiu atrás de mim.