terça-feira, 17 de junho de 2008

quinqüagenário

- Amor... amor... - sussurrava uma voz feminina.

- Hmmm – murmurou um pouco incomodado o homem que estava completamente absorto no fulgurante mundo dos sonhos. A voz da mulher que o chamava ecoava como um tambor em sua mente; ouvia-a distante e fraca, quase como o zumbido de um mosquito invisível, que incomoda sem que percebamos sua presença; era uma voz que se confundia entre toda a algazarra e tentava arrancá-lo daquele estado pesado de sonolência.

- Amor! Amor! – Chamava a mulher agora balançando o braço que a abraçava. – Acorda, vai... acorda... – insistia.

- O que aconteceu? – respondeu mecanicamente e com voz mole o homem que ainda não tinha certeza onde estava, quem era e o que fazia no mundo; no entanto,tentava demonstrar preocupação.

- Sonhei que havíamos nos separado. – dizia a mulher com voz aflita, trêmula. Seus olhos estavam completamente abertos e despertos, mirava o vazio da escuridão que encobria o quarto.

- Foi horrível! Não nos falávamos mais. Você não queria me ver e por alguma razão também não queria me ouvir; não sei nem se você fingia não me conhecer... acho que... - a voz feminina fez uma pausa, permeando suas palavras de um suspense indesejado. - Meu coração está tão apertado...

- Fique calma minha gatinha. – disse a voz masculina um pouco mais consciente de onde estava e do que acontecia. - Lembra quando te chamava sempre assim?... minha gatinha. Faz alguns anos que não te chamo assim, não sei por que fui me lembrar disso justo agora. Mas fique tranqüila, meu amor. Isso que você viu não passou de um mero pesadelo; essas impressões, estes sonhos ruins, às vezes grudam na memória como chiclete gruda no cabelo, mas também não quer dizer que sejam reais ou iminentes...

- Eu sei... eu sei... – interrompeu a mulher sabendo que o homem ainda tinha algo a lhe dizer; porém, não conseguiu permitir que ele continuasse. Sentia que aquele não era o momento para se perder em devaneios ou troças, principalmente a respeito de algo que, para ela, era tão sério e precioso. O fato de o homem ter iniciado sua resposta com um inocente gracejo causou-lhe certa indignação e levou-a a acreditar que suas palavras mal passaram pelos pêlos que germinavam das orelhas dele, lhe causou tamanha irritação que, instantaneamente se amalgamou ao medo, gerando uma combinação explosiva e fatal para seu coração; assim, com muito esforço ela conseguiu aprisionar as lágrimas nos olhos.

– Eu falava com você, mas você fingia não me ver. Nem olhava para mim... tenho certeza que era fingimento... eu tentava te abraçar, mas você se afastava. Foi horrível! Meu coração se apertou tanto que, no sonho comecei a chorar, a correr como louca para todos os cantos, gritava uma série de desatinos, fazia gestos só para você me notar, e nada! Nem uma manifestação sua. Até que desisti: cansei de toda aquela situação e comecei a chorar incontrolavelmente... – Neste momento a escuridão fez a gentileza de esconder uma lágrima que escapuliu e rolou no rosto da angustiada mulher.

- Calma, meu amor. Tenha calma. Foi só um pesadelo – tentava acalmar o pobre homem que há poucos instantes sonhava que era marinheiro e tinha descoberto uma terra completamente desconhecida. Ele a abraçava com mais força e dava-lhe beijos no ombro desnudo, afagava-lhe os cabelos, tudo com tanto carinho que ela parecia ser feita de porcelana.

– Lembra quando eu sonhei que tinha morrido? Eu sonhei por várias noites que afogava num rio, lembra? Lembra disso, minha gatinha? Lembra como foi horrível e como fiquei com tanto medo. Não achei que ia conseguir dormir novamente, nunca mais. Fiquei com medo de ter o sonho novamente... mas você me acalmou, até beijava minha careca, lembra, minha gatinha? E mesmo tendo aquele sonho horrível aqui estou eu, vivo e saudável como um gorila; e olha que este ano mesmo andamos de barco. Graças a você. Até hoje não sei se aquela viagem que você tanto quis fazer ao litoral era só para me mostrar que tudo aquilo não passava de um disparate, de um medo tolo. Você brincou com os golfinhos naquele dia... estava tão linda. – o homem tinha tanta facilidade para divagar quanto para cair no sono; às vezes nem a mulher entendia como conseguia agüentar aquele sujeito.

- Eu sei de tudo isso, me lembro claramente; você insistiu em usar aquele chapéu de palha no barco,ainda bem que bateu um vento e jogou aquele chapéu horrível no mar...– respondeu sem alterar o tom de voz –, mas não é a mesma coisa... não é a mesma situação... - argumentava a mulher. Parecia que travava uma batalha interna entre aquele lado de nossa mente que insiste transformar tudo em uma catástrofe e aquele outro que nos diz que tudo não passou de uma impressão.

- Você me ama? – podia-se sentir a voz falhar ao fazer essa pergunta; era como se ela não soubesse a resposta e a surpresa pudesse fuzilar-lhe a alma e acabar com tudo ao seu redor em apenas um segundo.

- Mas veja se isso é pergunta que se faça! Claro que te amo! Não te digo isso sempre? Não te trago flores, aquelas rosas vermelhas e as violetas que você tanto gosta? Não lhe trago quase todos os dias chocolates e uma infinidade de penduricalhos que tanto gosta? É claro que eu te amo! É tão claro quanto o céu azul que nos brindará pela manhã. Tão claro quanto o Sol e a luz...

Mesmo ele dizendo todas essas coisas, ela sentia como se as paredes do quarto se movessem e iam espremendo impiedosamente seu coração, que de tão apertado mal conseguia bater.

- Pare de exagerar, você sabe que eu não gosto quando você fala assim. Mas acho que você está certo... foi só um sonho... - começava ela mesma a tentar afastar qualquer tipo de pensamento que a fizesse duvidar de tudo que tinha por mais certo na vida - e você sabe que se algum dia pensar, simplesmente pensar, em me ignorar um segundo só que for, eu lhe darei tantos tapas que você perderá os sentidos e lhe faltarão dentes para falar comigo! Aí sim terá um bom motivo para não falar nada! - sentenciou a mulher, não transparecendo o tom de brincadeira com que afirmou a ameaça.

- Mas é claro! É claro ,minha gatinha! E se algum dia eu deixar de falar com você, eu lhe dou o mais inquestionável aval para me estapear até a imbecilidade, porque deve ser justamente esta a razão pela qual faria algo desse tipo. - A mulher esboçou um sorriso que só Deus pôde apreciar naquela penumbra que acolchoava o quarto; abraçou com força aquele braço que estava em volta de seu corpo e fechou os olhos para dormir.

- Obrigado - disse ela.

O homem respondeu o agradecimento com uma série de beijos, e quando terminou perguntou:

- Já passaram da meia-noite?

A mulher inclinou um pouco a cabeça e pode ver com alguma dificuldade as luzes verdes emanadas do rádio-relógio que estava ao lado da figura santa que os protegia todas as noites e confirmou:

- Sim, já passou da meia-noite.

- Vamos dormir então, minha gatinha, que hoje, logo pela manhã teremos uma grande festa na qual somos a principal atração.

- É verdade, vamos dormir, meu amor. - A mulher beijou a mão que recostava em seu peito, e se ajeitou mais uma vez na cama para dormir.

- Feliz bodas de ouro, minha gatinha. - sussurou o homem e lhe deu mais um beijo de boa noite.

- Feliz bodas de ouro, meu amor.

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