sábado, 4 de outubro de 2008

A cidade das sombras Cap. 2 - Resultados da Investigação

Uma mulher entra em uma casa apertada, cheirava fortemente a mofo e as paredes com manchas escuras traziam um aspecto miserável para o lugar. Pano, mesa, sofás rasgados, cobertores velhos e desfiados, armários de uma madeira podre e lâmpadas penduradas ao teto sem qualquer lustre, preenchiam a casa de quatro cômodos.

Passando pela entrada era a sala, não mais de cinco passos de largura e profundidade, um quadrado perfeito se não fosse por pilhas de caixas de papelão, um sofá desbotado que fora vermelho em um passado longínquo ocupado por cobertores pesados e travesseiros velhos, e um armário enorme que abrigava uma TV tão velha quanto a primeira lançada no mundo.

Passando reto uma pequena cozinha, apertada e com teto completamente tomada pelo mofo. Uma pequena mesa quadrada no centro coberta por um pano quadriculado vermelho e branco, utensílios como chaleira de ferro e alguns potes reutilizados de manteiga e maionese, uma geladeira antiga de uma porta, provavelmente dos anos sessenta e algumas cadeiras de madeira que dariam medo de sentar.

A senhora a recebeu alegre pedindo para que entrasse, paradas na cozinha a mulher virou-se para a senhora após olhar a pobreza e situação miserável do lugar:

- Preciso ver o que a senhora conhece - disse, partindo direto para o assunto que a trouxera ali.

- Sim minha jovem, e claro - respondeu a senhora corcunda da idade. - É logo ali - apontou.

Um corredor estreito e sombrio que se encontrava do lado oposto da passagem da sala para a cozinha, estava tão cheio de mofo que a tinta antes branca da parede se tornaram nada mais que uma mancha preta. O cheiro era insuportável, a mulher sentiu logo que entrou no corredor apertado, fazendo o máximo para não se encostar nas paredes.

Entrou na primeira porta, a senhora ficou na cozinha apenas a observando, virou-se para vê-la e ela sorriu acenando com a cabeça indicando que lá era o local certo.

Passando pela porta de madeira descascada e podre. Devorada por cupins e umidade, ela viu um quarto ainda mais apertado, entretanto não era pelo espaço. Aquele lugar era relativamente maior que a sala e a cozinha, porém a pilha de bagunça era tanta que tornava o movimento beirando o impossível. Na cama um jovem de não mais de quinze anos dormia enrolado por trapos que já foram um dia cobertores. O quarto fedia quase tanto quanto o corredor.

Encontrou um caminho até a janela do outro lado e a abriu, saltou para fora e apoiou-se em uma laje de cimento que estava a apenas dez centímetros a baixo da altura da janela. Olhou em volta, um jardim sujo cercado por paredes de concreto, isolada do mundo. Seu acesso era apenas por aquela janela. Pedaços de papel, copos plásticos, bitucas de cigarro, latas de cerveja e muitas outras coisas cobriam boa parte do gramado. Saltou no que foi não mais de um metro na grama e olhou para o que buscava.

Uma árvore enorme estava na quina no fundo do jardim, seu caule enorme podia facilmente abrigar uma casa de família. Aproximando-se viu que por baixo de sua copa era tão escuro que não se podia ver qualquer coisa, nem mesmo a estria ou se lá no meio das sombras havia de fato um caule que sustentava o topo. Da parte visível do tronco via-se bolhas grotescas e bizarras, como se fossem chagas mas ao invés de estarem na pele, estavam na casca brotando e guardando um pus amarelado e fétido. Em um canto uma bolha enorme esverdeada cheio de estrias que pareciam veias humanas aparecia metade para fora e metade para dentro do caule, a parte de cima dessa bolha entrava na região sombria sem visibilidade.

Ela sentiu a bílis subir pela garganta, respirou e voltou para dentro da casa, seguindo para cozinha. O garoto ainda dormia enrolado, mas tinha mudado de posição.

A velha senhora a aguardava.

- O que é aquilo? - perguntou a mulher. Sabia o que buscava, mas não imaginava que seria de fato aquilo. Nunca tinha visto qualquer imagem ou ilustração, aquele encontro com a árvore foi inédito.

O tempo nublado começava a fechar mais ainda, ela pode ver da janela da cozinha que dava para a parte mais a frente do jardim, longe da visão daquela monstruosidade que se assemelhava a uma árvore, uma fina garoa começava a cair.

- É amaldiçoada, ninguém quer saber dela. Todos a negam - respondeu a velha séria, fria e sem expressão. - Aqui é um tabu muito forte.

- Por que ninguém faz nada?

- É uma cidade pequena, todos a ignoram, são manipulados.

- Como assim manipulados?

- Quer saber a história dessa árvore? - perguntou a velha se sentando em uma das cadeiras. A mulher fez o mesmo sentando-se na cadeira próxima a senhora.

Após se acomodar, incomodamente, na cadeira de madeira que parecia ceder a qualquer momento, ela assentiu com a cabeça olhando atentamente para a senhora.

- Contam a história de dois irmãos que brigaram muito, por poder - começou a discorrer a história. - eles se amavam no inicio, mas passaram a se odiar. Eram tão felizes que a rivalidade entre os dois e as brigas constante foram um choque.

A mulher cruzou as pernas, colocou a mão sobre seu coldre em sua coxa checando se sua arma estava lá.

- Depois de muita briga, nesta mesma casa e nesta mesma cozinha, - continuou a velha. - eles mataram um ao outro.
Parou por um instante tentando se lembrar e aproveitando para tomar um fôlego, sua velhice era evidente. Após se lembrar dos fatos, prosseguiu no mesmo tom obscuro de antes.

- Seus pais, tentando evitar a fofoca da cidade, como já havia dito aqui é uma cidade pequena e todos sabem a respeito de todos, enterraram os dois no quintal debaixo daquela árvore.

Os olhos da mulher arregalaram, era então uma maldição, previu ela.

- Era uma árvore completamente normal, porém depois de enterrar eles algumas coisas estranhas começaram a acontecer com ela. Bolhas, chagas, inclusive insetos e animais nunca visto antes começaram a nascer dela - coçou a cabeça entre o pouco de cabelo que lhe restava. - Diziam que eram dois demônios, aqueles meninos, e que a árvore é maligna por causa do rancor deles.

Silêncio. Percebendo que a senhora havia terminado e ainda chocada, a mulher perguntou:

- Por que começaram a brigar repentinamente?

- Controle da mente - respondeu a senhora.

Sua resposta foi tão inesperada quanto brusca que a fez se assustar. Tentou se acomodar melhor naquela cadeira tomando mais cuidado para não a quebrar do que se ajeitando.

- Desculpe? - interrogou sem compreender direito o que a velha quis dizer.

- O antigo padre da cidade enfeitiçou todas as pessoas através de um refresco de garrafa que ele fabricava. Todos compravam exceto eu e minha família. Sabíamos das intenções malignas dele. Todos da cidade ficaram loucos e ainda estão.

- Como assim? Loucos?

- Esse refresco os deixa ignorantes, esquecem-se do que aconteceu aqui, neste exato lugar ignoram e continuam vivendo - revelou orgulhosa de estar em uma posição diferente dos demais na pequena cidade. - Quando se trata de falar sobre essa árvore, a história e esse jardim, é um grande tabu e nenhum deles vai falar. Exceto algumas pessoas.

- Mas não eram todas que bebiam essa bebida produzida por ele?

- Sim, inicialmente - revelou. - Porém com a chegada das bebidas industriais das cidades grandes, muitos, mesmo enfeitiçadas, ficaram curiosos e começaram a beber essas outras marcas e acabaram gostando. Mas poucos continuaram, e mesmo parando de beber, o medo que reside neles é tanto que preferem não comentar a respeito das coisas daqui da cidade.

- Enquanto a você? - inquiriu a mulher. - Você bebe o que?

É claro que foi uma pergunta ao acaso, era apenas para manter uma conversa mais leve e dar uma animada. Contudo ainda sim era uma dúvida que reluzia no fundo de sua cabeça.

- Não, não - respondeu a velha senhora. - Eu só bebo essa marca...

Levantou-se de sua cadeira e caminhou em direção a geladeira, a mulher a seguiu. Abrindo a porta ela puxou uma garrafa de vidro com um conteúdo líquido amarelado, assemelhando-se com suco de laranja. O nome no rótulo dizia "Il Somair"

- Eu só tomo essa marca. Produzida aqui na cidade - disse retirando a garrafa para tomar.

- E como a senhora sabe se essa não está drogada? - perguntou.

- Ora - começou a responder a velha. - Porque essa é produzida pelo novo padre - terminou levantando a garrafa para a mulher. - Quer experimentar uma?

No mesmo instante a cabeça da mulher girou, vertigem e náusea a tomaram. A imagem do padre do qual ela investigava surgiu pregada por trás de seus olhos, podia a ver e a tocar tão bem quanto a foto real em sua mesa no departamento de investigações especiais. Se era verdade o que aquela velha senhora disse sobre o refresco do padre anterior, então também era verdade que esse novo padre estava drogando as pessoas.

- D-desculpe - disse recuperando-se do susto. - E-eu esqueci de ver uma coisa no seu jardim - afirmou apontando de volta para o corredor. - Vou voltar lá para dar uma olhada.

A senhora tomou um gole de seu refresco e acenou com a cabeça confirmando que ela estava livre para voltar ao jardim de sua casa.

Parada na laje do lado de fora da janela, a mulher percebeu algo que tinha lhe escapado antes, no canto esquerdo do jardim na outra ponta do muro onde se encontrava a árvore maligna, havia uma entrada cujo o chão estava forrada por um piso sujo, cercada por uma parede azulejada até metade e cimentada. Não podia ver mais a dentro por causa das sombras, mas algumas raízes haviam atravessado a parede e entrado no lugar. Um calafrio percorreu-lhe a espinha, não teria coragem de investigar aquela entrada melhor. Talvez fosse uma área de serviço antiga que isolaram do resto da casa conforme o tempo passou.

Desceu da laje e olhou mais uma vez a árvore, notou que uma pequena elevação mais ao alto do tronco se elevava para fora, foi de baixo e notou uma porta de alumínio com uma janela de vidro no centro. Era pequena, assemelhava-se mais como uma janela do que como uma porta, mas era o suficiente para ela passar.

Respirando fundo e retirando coragem e forças do fundo de sua alma, começou a escalar para tentar entrar dentro daquela árvore. Não sabia por qual motivo, mas ela tinha que entrar lá para descobrir melhor sobre o que estava acontecendo e a verdade sobre aquela árvore.

Depois de não mais de dois metros notou a sua esquerda uma pequena abertura cercada de concreto, possivelmente alguma coisa havia lá antes do caule penetrá-la destruindo toda a parede. Olhado melhor dentro daquela pequena abertura quadrada, entre a madeira que a atravessava internamente notou alguns insetos estranhos andando.

Um deles, que a assustou, era um escorpião pequeno e marrom, era estranhamente deformado, ao invés de garras em forma de gancho parecia que uma bolha enorme e em carne viva se formara no lugar, e em seu corpo arredondado, estranhamente inchado formavam-se chagas parecidas com as da árvore, porém elas pulsavam como se cada uma delas fosse um parasita vivendo ao redor do corpo dele.

Com o susto ela soltou a árvore e caiu de pé na grama, dando passos para trás, próxima ao muro do seu lado esquerdo parou em choque a virar-se e ver mais milhares de escorpiões do mesmo gênero andando pela parede de tijolos e cimento.

Sacou sua arma, mas não pode mirar em qualquer coisa. Estava travada, presa e paralisada de medo. Sentiu o suor frio escorrer por suas costas e testa, ou talvez fosse a fina garoa que caia do céu desviando-se da enorme copa da árvore amaldiçoada.

A grande bolha metade para dentro do caule e metade para fora pulsou, o som semelhante a uma batida de coração, porém mais forte e mais alta ecoou pelo jardim.
Fechando os olhos, ela respirou fundo.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

A Ponte - parte I

Houve um tempo em que achei que minha miséria não seria notada. Disseram que a primeira coisa que notaram em mim foi que meu rosto ficara branco como uma folha de papel. Tinha olheiras profundas que denunciavam minhas poucas horas de sono – quantas horas não desperdicei fazendo cálculos e mais cálculos.

Com o tempo fui perdendo peso, e isto se deu com a mesma velocidade que perdia minha cor. Minhas calças ficaram tão grandes que dentro delas caberiam dois de mim. Pobres calças. São usadas religiosamente todo dia. O tecido já perdeu o brilho, as marcas de sujeira decorrentes do uso vão contaminando, pouco a pouco, cada centímetro de minhas pobres calças.

Minhas camisas já estão rotas; dificilmente poderia se dizer que são camisas, pois mais parecem trapos utilizados para engraxar os sapatos.

Eu só uso as camisas com meu paletó cujo pó e sujeira já são partes integrantes da peça; a costura de meu paletó já está toda rasgada e remendada, o mesmo pode-se dizer dos bolsos. Assim, quando saio de manhã, carrego meus documentos nas mãos, pois se colocar em alguns dos bolsos certamente não os veria novamente; já que, como disse estão todos furados.

É vestido desta forma - portando meus andrajos como se fosse uniforme escolar - saio todas as manhãs de minha casa improvisada de baixo da ponte que nos serve de teto, em busca de alguns trocados para sustentar minha pequena Linda, que fica o dia todo cuidando de Maria, nossa filha.

Esta vida não é tão ruim quanto parece. Semana passada, saí como sempre de minha pobre casa; chovia muito e fui obrigado a me proteger com um pedaço de papelão que muitas vezes me servia de toalha de mesa de jantar. Era neste pedaço de papelão que eu e minha família colocávamos nossos pratos e, após rezar e agradecer à Deus, comíamos os restos de outros que para nós era um banquete.

Eu caminhava pelo mesmo caminho de sempre: me dirigia à uma praça onde ficava sentado nos bancos, pedindo uma ajuda a quem tivesse Deus no coração e se compadecesse desta triste figura pálida e seca como um fóssil de galinha; então, no final do dia eu juntava as moedas que conseguia e as trocava na quitanda do Sr. Paulo – Deus o abençoe – por um punhado de feijão e um pouco de farinha.

Infelizmente naquele dia chovia muito e o pedaço de papelão que utilizava como escudo de nada me protegeu. Quando já estava completamente ensopado corri para debaixo de uma tenda de uma loja que vendia sapatos para mulheres.

Qual não foi minha surpresa quando ouvi uma vendedora da loja se aproximar da entrada, próxima de onde eu me protegia e gritar:

- Ei! Seu vagabundo! Saia já daí, você está espantando nossos clientes! Vá procurar outro lugar para vagabundear!

- Mas dona, está chovendo muito! Eu não tenho para onde ir com essa chuva. Não posso me proteger aqui? Não posso ficar aqui só até a chuva parar?

- Não pode e não vai! - Gritou a mulher enquanto voltava para dentro da loja e falava alguma coisa para um homem, que, após ouvir as palavras da mulher, as feições se transformaram em algo horrível. Me pareceu que ele me xingou de dentro da loja; quando virei meu rosto para dentro para ver o que estava se passando vi que o homem que mais parecia um gladiador se aproximava de mim como um touro. Segurava uma vassoura como se fosse uma lança. Meu instinto me avisou: você será o alvo.

Esperei o homem colocar a cabeça para fora da loja. Iria explicar que não pretendia ficar na porta de sua loja muito tempo, só estava esperando a chuva diminuir um pouco.

Imaginei que ele, provavelmente por ser honesto e pai de família como eu, não iria me agredir com aquela vassoura, muito menos me enxotar dali para enfrentar aquela tempestade apenas com os trapos que mal cobriam minha pele de tão finos e gastos.

Como me doeu a primeira pancada. Achei que fosse desmaiar, mas tive forças para correr e evitar que fosse atingido novamente.

Eu entendo que minha aparência, no momento, não é das melhores. Tomo banho em raras ocasiões, mas mesmo assim meu corpo não exala uma fragrância tão repugnante a ponto de ser expulso de qualquer lugar. Às vezes tenho vontade de revidar ao agressor, tenho vontade de lhe dizer, olhando-o nos olhos:

- Pare com isso homem! Não está vendo que sou igual à você?! Sou pai de família, trabalhador!
Nunca me dão tempo de pronunciar nem o “ai!” como reflexo das bordoadas. Assim, quando vejo a possibilidade de perigo, logo corro, como um animal acostumado ao tratamento especial dos seus semelhantes.

Meu corpo era castigado pela chuva que impiedosamente me atingia nos olhos, na boca, no peito, pernas, pés e alma.

O sapato que eu usava exigia de mim uma certa técnica para andar com ele nos pés, pois, se eu pisasse com muito vigor poderia ser visto que não havia mais costura na parte de traseira, o que me obrigava a andar a andar de uma forma bem peculiar, sem tirar muito os pés do chão.
Este sapato é tão velho quanto eu. Ganhei-o de presente de um dos professores da escola em que eu era bedéu na parte da manhã e tarde. Era aluno também no período noturno.

Só de lembrar como era respeitado por todos naquele tempo as lágrimas me vêm aos olhos.
Vendo que não poderia vencer a chuva, dei por caminhar com passos lentos de volta para casa pois com chuva as pessoas não vão à praça, logo: não tenho aonde pedir ajuda.

domingo, 21 de setembro de 2008

A cidade das sombras. Cap. 1-A última noite

Capitulo 1: A última noite.

Estava em uma mesa de um bar fechado, fumaça de cigarro por todo o ambiente com apenas uma fraca luz amarelada vinda de cima da mesa redonda. Um senhor estava sentado do meu lado, porém diferente de mim estava calmo, enquanto eu estava terrivelmente ansioso.

- Temos que chamar todo mundo, se não eles vão morrer! - exclamei para o senhor que assoprava a fumaça do seu cigarro.

- Acalme-se - retrucou tranqüilo dando outro trago.

- Mas, você sabe que não deveríamos ter brincado com eles! Agora todo mundo vai morrer! - exclamei novamente, o grito ecoando pelo lugar deserto. - Temos que ficar juntos!

- Sim, concordo - apagou o cigarro no cinzeiro de vidro já cheio. - Por isso eu chamei todos para cá. Para que pudéssemos olhar um ao outro.

- Mas eles já deviam estar aqui! - retruquei como se já estivesse ciente da vinda deles. - Alguma coisa aconteceu! Sobramos apenas nós.

O senhor não respondeu. Após longos minutos sem pronunciarmos palavra sequer, um a um outros rapazes começaram a entrar e, como se nada estivesse acontecendo, sentavam-se a mesa, alguns se sentaram na mesa ao lado quando a nossa ficou sem lugares.

- Onde estão os dois? - não sabia o nome desses outros dois, mas claramente os outros me compreenderam.

- Pegaram eles - respondeu um rapaz que chegava ofegante. Com certeza havia corrido, ou melhor, fugido de algo.

- Mas como? - perguntei espantado e ao mesmo tempo amedrontado em obter a resposta.

- Não sei os detalhes, mas ouvi que invadiram a casa deles - começou o relato após tomar fôlego, seu rosto tão assustado quanto o meu. - Seus corpos dilacerados.

Todos que observavam viraram seus olhares para nenhum lugar em especial. Em suas mentes um turbilhão de pensamentos onde imaginavam qual seria o futuro inevitável e aterrador que os aguardavam. Incluindo o meu. Senti um calafrio percorrer minha espinha de baixo até a nuca. Tremi de medo.

- Então vamos todos morrer.

Me virei para o senhor que acendeu um outro cigarro, olhar disperso como de todos. Ele apenas assentiu com um pequeno movimento da cabeça. O que me assustava era que ele não parecia nem um pouco abalado com tudo aquilo.

Um padre entrou no bar pela porta de trás, o barulho de seus passos quebrou o mórbido silêncio que envolvera o bar. Todos o olharam assustados, a tensão e horror era palpável.

- Vocês não deveriam ter se metido no que não conhecem.

Sua voz ameaçadora e sem sentimentos penetrou por nossos ouvidos como pregos sendo martelados diretamente nos tímpanos. Sabíamos que não haveria como sairmos de lá. Aquela era nossa última noite na cidade.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Trecho

Era uma noite como todas as outras mas esta era excessivamente negra. A lua cheia se escondia atrás da cortina de névoa cinza e parecia estar suspensa no céu apenas por um barbante prestes a se romper; as calçadas estavam completamente vazias, nem as almas perdidas ousavam perambular com seus andrajos por aqueles cantos escuros que exalavam um cheiro seco e arenoso, e invadiam nossas narinas impiedosamente; as fachadas das lojas estavam trancadas e protegidas pelas armaduras de ferro impedindo que víssemos o que cada uma abrigava, nem as luzes amareladas que escapam pelas janelas daqueles que se esquecem de dormir deram o ar de sua presença. Era como se a escuridão tivesse lançado um decreto irrevogável: esta noite não haverá luz.

Meu pai e eu caminhávamos de mãos dadas entre a cortina de fumaça – digo que aquela figura cuja mão eu segurava era meu pai, mas em momento algum consegui olhar diretamente para seu rosto. Isto é uma das coisas que acontecem nos sonhos, há uma convicção em nossa alma que nos acalenta, sussurra ao nosso coração: este homem é seu pai, mesmo que não se pareça em nada com ele, este homem é seu pai.

Eu mesmo já ouvi relatos de pessoas que acordaram com seus corações tentando fugir-lhes pela boca e olhos inundados em lágrimas: sonharam que a mãe havia morrido. Porém, quando pararam para analisar o pesadelo percebiam que aquela figura, cuja alma foi levada por anjos com asas cor de neve, em nada se parecia com sua mãe. No entanto, esta constatação, de que tudo não se passou de um sonho, não os impediu de sofrer e sentir o rombo da perda na alma, alguns sofreram por um dia outros por uma semana inteira. Eis o efeito que certos sonhos podem causar em um indivíduo.
De qualquer forma, aquela figura, que eu sabia por conta de qualquer razão metafísica que era meu pai, tinha rosto encoberto por uma fumaça cinza que se misturava com a névoa e se confundia com as nuvens, usava na cabeça um chapéu bege, um longo sobretudo cinza, que lhe cobria quase o corpo inteiro, as calças e os sapatos marrons. Eu não vestia nada além de uma camisa amarela, uma bermuda e um par de sapatos de couro, bem gastos.

Caminhávamos com passos tranqüilos por entre o enigma que era aquela rua. Não sentia muito medo, mas o fato de não distinguir um palmo à minha frente me obrigou a aguçar os sentidos o máximo que pude.
De repente, rompendo o colete de trevas e névoa que dominava tudo ao redor, surge em nosso caminho um filhote de labrador. Ele corria frenético em nossa direção, com sua língua rosada à mostra e abanando violentamente seu curto rabinho.
O pequenino filhote em momento algum parecer temer a presença daqueles dois estranhos parados na sua frente, ao contrário, sua amabilidade e afeto conosco eram incríveis. Mesmo sendo um filhote com poucos dias de vida – fato que presumi pelo seu tamanho, não teve dificuldades para se apoiar em minhas coxas com suas duas patinhas dianteiras e lamber minhas mãos com tanto carinho que só de lembrar me enchem os olhos de lágrimas.

terça-feira, 17 de junho de 2008

quinqüagenário

- Amor... amor... - sussurrava uma voz feminina.

- Hmmm – murmurou um pouco incomodado o homem que estava completamente absorto no fulgurante mundo dos sonhos. A voz da mulher que o chamava ecoava como um tambor em sua mente; ouvia-a distante e fraca, quase como o zumbido de um mosquito invisível, que incomoda sem que percebamos sua presença; era uma voz que se confundia entre toda a algazarra e tentava arrancá-lo daquele estado pesado de sonolência.

- Amor! Amor! – Chamava a mulher agora balançando o braço que a abraçava. – Acorda, vai... acorda... – insistia.

- O que aconteceu? – respondeu mecanicamente e com voz mole o homem que ainda não tinha certeza onde estava, quem era e o que fazia no mundo; no entanto,tentava demonstrar preocupação.

- Sonhei que havíamos nos separado. – dizia a mulher com voz aflita, trêmula. Seus olhos estavam completamente abertos e despertos, mirava o vazio da escuridão que encobria o quarto.

- Foi horrível! Não nos falávamos mais. Você não queria me ver e por alguma razão também não queria me ouvir; não sei nem se você fingia não me conhecer... acho que... - a voz feminina fez uma pausa, permeando suas palavras de um suspense indesejado. - Meu coração está tão apertado...

- Fique calma minha gatinha. – disse a voz masculina um pouco mais consciente de onde estava e do que acontecia. - Lembra quando te chamava sempre assim?... minha gatinha. Faz alguns anos que não te chamo assim, não sei por que fui me lembrar disso justo agora. Mas fique tranqüila, meu amor. Isso que você viu não passou de um mero pesadelo; essas impressões, estes sonhos ruins, às vezes grudam na memória como chiclete gruda no cabelo, mas também não quer dizer que sejam reais ou iminentes...

- Eu sei... eu sei... – interrompeu a mulher sabendo que o homem ainda tinha algo a lhe dizer; porém, não conseguiu permitir que ele continuasse. Sentia que aquele não era o momento para se perder em devaneios ou troças, principalmente a respeito de algo que, para ela, era tão sério e precioso. O fato de o homem ter iniciado sua resposta com um inocente gracejo causou-lhe certa indignação e levou-a a acreditar que suas palavras mal passaram pelos pêlos que germinavam das orelhas dele, lhe causou tamanha irritação que, instantaneamente se amalgamou ao medo, gerando uma combinação explosiva e fatal para seu coração; assim, com muito esforço ela conseguiu aprisionar as lágrimas nos olhos.

– Eu falava com você, mas você fingia não me ver. Nem olhava para mim... tenho certeza que era fingimento... eu tentava te abraçar, mas você se afastava. Foi horrível! Meu coração se apertou tanto que, no sonho comecei a chorar, a correr como louca para todos os cantos, gritava uma série de desatinos, fazia gestos só para você me notar, e nada! Nem uma manifestação sua. Até que desisti: cansei de toda aquela situação e comecei a chorar incontrolavelmente... – Neste momento a escuridão fez a gentileza de esconder uma lágrima que escapuliu e rolou no rosto da angustiada mulher.

- Calma, meu amor. Tenha calma. Foi só um pesadelo – tentava acalmar o pobre homem que há poucos instantes sonhava que era marinheiro e tinha descoberto uma terra completamente desconhecida. Ele a abraçava com mais força e dava-lhe beijos no ombro desnudo, afagava-lhe os cabelos, tudo com tanto carinho que ela parecia ser feita de porcelana.

– Lembra quando eu sonhei que tinha morrido? Eu sonhei por várias noites que afogava num rio, lembra? Lembra disso, minha gatinha? Lembra como foi horrível e como fiquei com tanto medo. Não achei que ia conseguir dormir novamente, nunca mais. Fiquei com medo de ter o sonho novamente... mas você me acalmou, até beijava minha careca, lembra, minha gatinha? E mesmo tendo aquele sonho horrível aqui estou eu, vivo e saudável como um gorila; e olha que este ano mesmo andamos de barco. Graças a você. Até hoje não sei se aquela viagem que você tanto quis fazer ao litoral era só para me mostrar que tudo aquilo não passava de um disparate, de um medo tolo. Você brincou com os golfinhos naquele dia... estava tão linda. – o homem tinha tanta facilidade para divagar quanto para cair no sono; às vezes nem a mulher entendia como conseguia agüentar aquele sujeito.

- Eu sei de tudo isso, me lembro claramente; você insistiu em usar aquele chapéu de palha no barco,ainda bem que bateu um vento e jogou aquele chapéu horrível no mar...– respondeu sem alterar o tom de voz –, mas não é a mesma coisa... não é a mesma situação... - argumentava a mulher. Parecia que travava uma batalha interna entre aquele lado de nossa mente que insiste transformar tudo em uma catástrofe e aquele outro que nos diz que tudo não passou de uma impressão.

- Você me ama? – podia-se sentir a voz falhar ao fazer essa pergunta; era como se ela não soubesse a resposta e a surpresa pudesse fuzilar-lhe a alma e acabar com tudo ao seu redor em apenas um segundo.

- Mas veja se isso é pergunta que se faça! Claro que te amo! Não te digo isso sempre? Não te trago flores, aquelas rosas vermelhas e as violetas que você tanto gosta? Não lhe trago quase todos os dias chocolates e uma infinidade de penduricalhos que tanto gosta? É claro que eu te amo! É tão claro quanto o céu azul que nos brindará pela manhã. Tão claro quanto o Sol e a luz...

Mesmo ele dizendo todas essas coisas, ela sentia como se as paredes do quarto se movessem e iam espremendo impiedosamente seu coração, que de tão apertado mal conseguia bater.

- Pare de exagerar, você sabe que eu não gosto quando você fala assim. Mas acho que você está certo... foi só um sonho... - começava ela mesma a tentar afastar qualquer tipo de pensamento que a fizesse duvidar de tudo que tinha por mais certo na vida - e você sabe que se algum dia pensar, simplesmente pensar, em me ignorar um segundo só que for, eu lhe darei tantos tapas que você perderá os sentidos e lhe faltarão dentes para falar comigo! Aí sim terá um bom motivo para não falar nada! - sentenciou a mulher, não transparecendo o tom de brincadeira com que afirmou a ameaça.

- Mas é claro! É claro ,minha gatinha! E se algum dia eu deixar de falar com você, eu lhe dou o mais inquestionável aval para me estapear até a imbecilidade, porque deve ser justamente esta a razão pela qual faria algo desse tipo. - A mulher esboçou um sorriso que só Deus pôde apreciar naquela penumbra que acolchoava o quarto; abraçou com força aquele braço que estava em volta de seu corpo e fechou os olhos para dormir.

- Obrigado - disse ela.

O homem respondeu o agradecimento com uma série de beijos, e quando terminou perguntou:

- Já passaram da meia-noite?

A mulher inclinou um pouco a cabeça e pode ver com alguma dificuldade as luzes verdes emanadas do rádio-relógio que estava ao lado da figura santa que os protegia todas as noites e confirmou:

- Sim, já passou da meia-noite.

- Vamos dormir então, minha gatinha, que hoje, logo pela manhã teremos uma grande festa na qual somos a principal atração.

- É verdade, vamos dormir, meu amor. - A mulher beijou a mão que recostava em seu peito, e se ajeitou mais uma vez na cama para dormir.

- Feliz bodas de ouro, minha gatinha. - sussurou o homem e lhe deu mais um beijo de boa noite.

- Feliz bodas de ouro, meu amor.

domingo, 1 de junho de 2008

Novidade

"Não, senhor, não quero saber destes forjadores de enredos! Em lugar de escrever algo de útil, agradável e consolador, comprazem-se em rebuscar as mais insignificantes minúcias, divulgando-as por aí. Francamente, eu os proibiria de pegar da pena, pois o resultado é que agente lê... e logo, sem querer, se põe a pensar no que leu.... e afinal de contas... fica com a cabeça cheia de disparates. E assim, repito: eu os proibiria de escrever, terminantemente, categoricamente, sem apelo!"

Príncipe V.F. Odoiévskii

Extraído de Gente Pobre - Dostoievski, Fiodor - Ed. José Olympio -1960

segunda-feira, 28 de abril de 2008

A garota da colina

O conto foi feito como o estilo maravilhoso para um trabalho da universidade, como acabei não utilizando, vou colocar ele aqui. xD

A garota da colina.

Estava sempre sozinha na colina de árvores e grama de um verde intenso e impossível, o céu azul e limpo com um sol que trazia o calor de verão, a garota de longo cabelo ficava lá sentada do nascer ao por do sol, aguardando por algo que já havia a tempos esquecido.

Por que esperava? Por que naquele lugar? Nem ela mesma sabia, mesmo assim ela ficava lá, em um paraíso solitário, um mundo onde apenas a natureza a fazia companhia.

Ao seu lado uma pequena cesta com frutas colhidas logo depois de acordar, quando os pomares ainda se lavavam com o frio e delicado orvalho da manhã. Iria comer sozinha, como fazia todos os dias, todas as semanas, meses e anos que estivera lá naquela colina. A paisagem mostrava sua beleza quando o primeiro raio de sol começava a acariciar a terra, e ela assistia como se tudo aquilo fosse inédito, completamente novo, mesmo sabendo que já havia visto e que ainda veria no dia seguinte, adorava, amava tudo aquilo, mesmo não tendo ninguém com quem compartilhar aquele jardim do Éden.

Nunca se sentiu sozinha, não conhecia esse sentimento uma vez que nunca compartilhou sua vida com nenhuma outra pessoa, mas de certa forma seu espírito sabia e ela sentia, mesmo que não soubesse o que era tal sentimento, que precisava de alguém para conversar, alguém com quem pudesse compartilhar seus pensamentos, sua voz, suas palavras; alguém que pudesse tocar, e também ser tocada, queria sentir o conforto de estar em volto aos braços e em companhia de alguém.

Foi depois de não se sabe quantos milhares de anos, vindo das estrelas que surgiam na noite, dizia que foi a pedido de duas amigas que não podiam falar com ela, o sol e a lua, que viera, percorrera uma distancia longa, quase infinita, apenas para encontrá-la. Estava aguardando, de pé e encostado na árvore no topo da colina em que ela sempre se sentava em baixo, passara a noite em claro apreciando toda aquela vastidão bela, que até então só pudera ver em quadros, seus olhos lacrimejaram ao serem tocadas pelos primeiros raios de sol e com a vista embaçada pelas lagrimas, ele limpou com a manga de sua blusa.

Não parecia ter reparado na presença dela, parada em pé atrás dele, estática, em choque, não sabia o que fazer, o que falar, esperara anos, dos quais perdera a conta, por aquele momento, uma pessoa além dela própria, alguém com quem pudesse viver. Estava prestes a chorar, mas tinha medo de que se o fizesse aquele rapaz partisse. Queria falar, mas as palavras não se pronunciavam, seus lábios apenas abriam e fechavam, estava muda.

Quando se virou ele a viu, então se aproximou dela com os olhos já enxugados das lagrimas, e com um sorriso abriu os braços e girou no lugar como se estivesse mostrando e ao mesmo tempo tentando abraçar toda aquela beleza.

“É lindo. Esse lugar em que você vive. É muito lindo.”

Ainda sem palavras ela apenas balançou a cabeça em afirmação, olhando fixo para o rosto daquele rapaz desconhecido, como uma criança olha para os pais quando estão dizendo algo extremamente importante, com toda a atenção que consegue ter.

“Mas também é muito solitário, não? Você é a única pessoa aqui neste planeta, não é verdade?”

Mais uma vez afirmou com um balanço de cabeça.

“Uma linda prisão para as pessoas que conhecem o sentimento de convívio, um mundo comum para aqueles que nunca virão outras pessoas.”

“Vim aqui para perguntar se você gostaria de ir para um lugar onde existem outras pessoas.” Disse o rapaz ao virar-se para ela. “Vir junto comigo.”

Passaram um longo tempo apenas olhando um para o outro, não tinham nenhuma expressão de duvida, alegria ou tristeza.

“E - eu...”, mas a garota não conseguiu terminar, baixou a cabeça e observou a cesta de frutas que segurava pela alça com ambas as mãos em frente ao seu corpo, podia ver algumas maçãs, pêras e amoras colocadas dentro de uma toalhinha de pano em cima das outras frutas para que elas não as esmagassem.

“Sim?”, fitou-a com um olhar curioso, aguardando que ela terminasse sua frase.

“O - outras pessoas?” Voltando seu olhar novamente para o rosto do rapaz que agora estava mais próximo que antes.

“Sim, muitas delas. Nem todas vieram de planetas tão belos como esse ou tão solitários também. Alguns mal sabem o que estão fazendo lá, outras foram para lá a contra gosto, mas posso garantir para você que existem muitas pessoas de todos os tipos, alegres, bondosas, felizes e que sempre querem compartilhar sua vida com outros.” Fez uma pausa. “Mas...”

“Mas?” Agora era ela que estava esperando que ele completasse a frase, seus olhos brilhavam, não conseguia imaginar uma pessoa além dela, muito menos um mundo cheio delas, de todos os tipos e repleto de diferentes sentimentos.

“Você nunca mais poderá voltar para esse planeta em que está vivendo agora.” Completou.

“Ah...” novamente baixou a cabeça, pensativa.

Ambos ficaram em silencio, o vento soprava e o sol já estava no alto do céu, radiante e belo como era todos os dias naquele mundo.

“Você não precisa dizer se quer vir junto comigo ou não agora, eu vou aguardar o tempo que for necessário para que você tome a decisão, vou estar todos os dias aqui, debaixo desta arvore, do alvorecer ao anoitecer.”

No raiar do dia seguinte ele a aguardava da mesma forma que estivera no dia anterior, desta vez não carregava cesta alguma, foi ao reparar nisso que o rapaz soube que sua decisão havia sido feita. A garota se despedira de cada lugar que esteve, cada arvore que lhe deu de comer, dos riachos que a deram de beber, da luz do sol e da lua que a acompanhavam em silencio, iluminando seu caminho; também se despediu da grama e do céu, de sua cabana e de cada toalhinha de pano que deixava dobrado gentilmente sobre uma bancadinha de madeira que ela mesmo entalhara com os restos de uma árvore morta.

“Está pronta?” perguntou o rapaz ao desencostar da árvore.

Ela se aproximou da mesma árvore tocando-a com uma das mãos seu caule rugoso e antigo, uma companheira quieta mas fiel, que a cobriu do sol escaldante e deu um lugar onde sentar e encostar, como um pai que da o colo para o filho cansado.

“Sim.” Respondeu fechando seus olhos e retirando sua mão do caule. Em seu pensamento ela prometeu que nunca esqueceria aquele mundo, aquele planeta, sua verdadeira casa, seu lar, onde todas aquelas coisas que nunca pronunciaram uma palavra, lhe deram a vida e beleza das quais conheceu desde a nascença.

“Vamos.” O rapaz estendeu sua mão e a garota a aceitou. Ambos abriram suas asas olhando para o céu alaranjado que começava a surgir com os primeiros raios de sol, então, ainda de mãos dadas, eles voaram através do infinito.

O cheiro de tabaco misturado com café e um clarão a fizeram despertar de seu sono, alguém havia aberto as cortinas do quarto. Ainda atordoada pelo sono, ela se levanta e encosta na cabeceira da cama observando em volta.

A porta da sacada do apartamento estava aberta, um rapaz estava sentado lá em uma das cadeiras de lá, com um cigarro em uma das mãos e uma xícara na outra, ele observava o céu; era seu marido que, como de costume, acordava cedo para observar o alvorecer.

Ao perceber que sua esposa havia acordado quando vira para olhá-la ele sorri e com a mão que segurava a xícara faz um gesto indicando o criado-mudo que ficava ao lado da cama, ela vira e vê uma cesta com maçãs, pêras e amoras, e do lado uma xícara de café.

“Estão frescas. São suas preferidas, não?” Diz o rapaz lá de fora na sacada.

Com um sorriso alegre ela acena em afirmação em direção ao marido. Dando um gole de seu café e depois pegando uma maçã com a outra mão, se levanta e vai até ao lado dele na sacada e o beija, sussurrando em seu ouvido:

“Obrigada, amor. Eu te amo.”

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Último Fragmento

Nesta noite sinto que meu coração não bate por mim, não é por minhas veias que corre este sangue. Neste exato instante sinto que meu coração bate para o mundo, para aqueles que não tem voz, não tem nada. Por isso não preciso usar minhas palavras para dizer nada. Valho-me dos outros, que fazem meu ofício assaz melhor que eu.

A CASA DO OSCAR

Chico Buarque

"A casa do Oscar era o sonho da família. Havia o terreno para os lados da Iguatemi, havia o anteprojeto, presente do próprio, havia a promessa de que um belo dia iríamos morar na casa do Oscar. Cresci cheio de impaciência porque meu pai, embora fosse dono do Museu do Ipiranga, nunca juntava dinheiro para construir a casa do Oscar. Mais tarde, num aperto, em vez de vender o museu com os cacarecos dentro, papai vendeu o terreno da Iguatemi. Desse modo a casa do Oscar, antes de existir, foi demolida. Ou ficou intacta, suspensa no ar, como a casa no beco de Manuel Bandeira.
Senti-me traído, tornei-me um rebelde, insultei meu pai, ergui o braço contra minha mãe e sai batendo a porta da nossa casa velha e normanda: só volto para casa quando for a casa do Oscar! Pois bem, internaram-me num ginásio em Cataguazes, projeto do Oscar. Vivi seis meses naquale casarão do Oscar, achei pouco, decidi-me a ser Oscar eu mesmo. Regressei a São Paulo, estudei geometria descritiva, passei no vestibular e fui o pior aluno da classe. Mas ao professor de topografia, que me reprovou no exame oral, respondi calado: lá em casa tenho um canudo com a casa do Oscar.
Depois larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando a minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é a casa do Oscar."

Fragmento de "O Triste Fim de Policarpo Quaresma"

"... contudo, quem sabe se outros que lhe seguissem as pegadas não seriam mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo e substância? E esse seguimento adiantaria alguma coisa? E essa continuidade traria enfim para a terra alguma felicidade? Há quantos anos vidas mais valiosas que a dele, se vinham oferecendo, sacrificando e as coisas ficaram na mesma, a terra na mesma miséria, na mesma opressão, na mesma tristeza.

E ele se lembrava que há bem cem anos, ali, naquele mesmo lugar onde estava, talvez naquela mesma prisão, homens generosos e ilustres estiveram presos por quererem melhorar o estado de coisas de seu tempo. Talvez só tivessem pensado, mas sofreram pelo seu pensamento. Tinha havido vantagem? As condições gerais tinham melhorado? Aparentemente sim; mas, bem examinado, não.

Aqueles homens, acusados de crime tão nefando em face da legislação da época, tinham levado dois anos a ser julgados; e ele, que não tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado; seria simplesmente executado!

Fora bom, fora generoso, fora honesto, fora virtuoso -- ele que fora tudo isso, ia para a cova sem o acompanhamento de um parente, de um amigo, de um camarada..."

O Triste Fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Do Jabaquara ao Tucuruvi

As duas foram jogadas para dentro do metrô, como se duas ondas enormes as tivessem empurrado com toda a força que só a natureza pode exercer sobre nós, pobres seres humanos.

Por puro capricho da sorte ou brincadeira do acaso, sentaram-se uma ao lado da outra. A que se encontrava ao lado da janela era Maria e ao seu lado sentou-se Josefa, que ajeitou com presteza seu filho José, que estava sentado em seu colo.

Maria trabalha com vendas, adora falar. Deus lhe imbuiu de uma eloqüência digna de vendedores de dietas miraculosas nos programas de final da tarde. Adorava ler, lia tudo! Sabia todas as estações do metrô de cor e salteado. Conhecia todos os remédios para gripe, quais suas composições e melhores ocasiões para usá-los. Conhecia um pouco de tudo, enfim, uma chata.

Josefa, por sua vez, mal sabia escrever seu nome, era uma mulher de vida humilde, família humilde, aparência humilde, fala humilde, enfim, uma chata. Casou-se aos 16 anos com Diego, uma semana depois estava grávida de José, o garoto de 2 anos sentado em seu colo. José, conseqüência da cadeia hereditária e por galhofa de Deus, era muito parecido com a mãe. Assim, tinha uma vida humilde, família humilde, aparência humilde, enfim, um coitado.

Enquanto o metro cruzava a estação Conceição, Maria dirigiu-se a José, fez aquela expressão de espanto, forçou a voz em tom infantil, como que para agradar o pobre rapaz e disse:

- Mas que menino lindo! Qual o seu nome menino lindo?

O rapaz apenas a olhou. Não mudou a expressão séria, não sorriu, pelo que eu me lembro, sequer piscou. Maria olhou-o, depois fitou a mãe e insistentemente dirigiu-se ao menino novamente:

- Ué? Está bravo? A mamãe brigou com você? – E o menino permanecia imóvel, irresoluto, como uma estátua.

Maria fez uma expressão de desentendida, deu de ombros e passou a encarar a janela do metrô, sentindo-se completamente contrariada. A mãe de José, Maria, disse em voz baixa, quase sussurrando: “Ele não é muito de falar não, moça”. O fato de Josefa ter se manifestado a respeito do “diálogo” havido despertou a expressão extremamente sapiente que se perpetrava no rosto de Maria.

- Não é de falar? Como pode? Um menino tão grande, tão forte, tão bonito! – Dizia olhando para o rapaz na esperança de que suas palavras surtissem algum efeito mágico e o menino despertasse de seu transe para lhe agradecer enormemente por ter lhe curado da mudez.

- É – Respondeu a mãe, no mesmo tom de voz – Ele é mais de gemer, chorar e fazer barulhos estranhos quando quer algo.

- Entendo. Exatamente como um namorado que eu tive. – Ficaram as duas em silêncio olhando para o chão.

- Quantos ele tem? – Indagou Maria. – Diz pra moça quantos anos você Zé, diz? – O menino envergonhado escondeu o rosto entre o peito da mãe.

Suspeito que este diálogo não o estava agradando nem um pouco.

- Sabe, - Maria sempre começava suas preleções assim. Seus amigos mais íntimos quando ouvem o “Sabe” já compreendem o que vai se seguir, e logo inventam alguma razão para fugir ou tentam suicídio (o que é mais comum). – Eu já trabalhei com crianças. É muita estranha essa mudez. Tenho certeza disso. Já li em muitos livros. Ele com certeza tem mais de 1 ano e meio, já deveria estar falando. Ele canta?

Josefa não teve tempo de responder pois Maria continuou:

- Pode ser psicológico, já dei uma palestra sobre crianças muito retraídas... – Passaram a estação São Judas, Saúde, Praça da Árvore, Santa Cruz, Vila Mariana, Ana Rosa, e Maria continua incessante:

- Nos Estados Unidos, fizeram uma série de testes com macacos mudos... – Josefa fingia prestar atenção com maestria, pois parou de entender o que a outra estava dizendo há umas 5 estações atrás.

Quando o metrô se aproximou da estação Sé, Josefa se levantou, fato que obrigou Maria a interromper, muito a contragosto, o que dizia. Justamente agora que chegaria na parte mais importante! Ia discorrer sobre o que a mudez significada para os Incas, e compararia este significado com a doutrina existencialista de Kierkergaard.

- Bom, eu desço aqui. Muito Obrigado moça. Foi um prazer. – Disse Josefa sem saber exatamente pelo que estava agradecendo. Maria limitou-se a sorrir e acenar com a mão. Tenho certeza que em sua cabeça continuava discursando energeticamente.

José que já andava ao lado da mãe, segurando sua mão, surpreendentemente proferiu as únicas palavras que iria dizer antes dos 15 anos:

- Mamãe, eu prefiro ficar mudo do que falar como essa mulher!

- Eu também filhinho, eu também.

sábado, 29 de março de 2008

O show deve continuar, mas que show?

Apesar de não me lembrar muito bem, gosto de pensar que muito antes de isso tudo começar eu conseguia sorrir sem sentir um pingo de nervosismo; conseguia aproveitar cada momento como se fosse mais um no meio de uma coleção enorme de boas lembranças. Minha voz não era tão amarga e meus olhos mais brilhosos; não se pareciam como estrelas encobertas pelas nuvens negras numa noite mais negra ainda.

Quando começou, meu corpo foi o primeiro a sentir o golpe. Era como se fossem desferidos inúmeros socos na minha barriga; toda vez que tentava recuperar o fôlego um sorrateiro golpe era novamente desferido. Mesmo com o coração acelerado por conta das pancadas sucessivas e o pulmão nunca integralmente cheio, ainda sentia prazer no por do sol, no cigarro pós-amor, em sentar-me na beira da janela de madrugada para ver as estrelas mais de perto. Ainda tinha tempo para perguntar se as estrelas também me viam.

Não muito tempo depois do início, pouco antes de meu corpo desabar, minha mente me enviou um bilhete dizendo: “parti para nunca mais voltar, o que você fazia comigo é desumano. Precisei partir. Não me desculpo. Seja feliz”. Me senti como o único ser na Terra cuja mente desistiu de pensar. Obviamente que não pensei em desistir, afinal, pensar já não era uma palavra constante no meu dicionário, e outra, estava no meio da jornada. Para não sucumbir de vez, decidi me esforçar em dobro e forcei minha cabeça sem que ela quisesse trabalhar. Dobrei o tempo e carga do serviço. Minha meta era conseguir meu objetivo ou vegetar tentando.

Pouco tempo depois de minha inócua tentativa em busca de me tornar algo maior que eu mesmo, talvez uns dois dias, não havia, para mim, mais carros na rua, nem estrelas, nem bitucas, nem cachorros ou pessoas. Restara apenas eu e eu mesmo no mundo, os dois seres que mais odeio, completamente insuportáveis. Dei graças à Deus quando sucumbi de tanto me esforçar para me esforçar. A questão é que me esgotei. De tanto me dar chibatadas, me prostrei diante de mim mesmo, cerrei os dentes, enxuguei os olhos, encarei-me frente à frente, olhos nos olhos. Prossegui. Não fui muito inteligente.

Quando dei por mim, ainda trajava o pijama da semana passada, o chinelo estava no mesmo lugar, mas já não era eu quem os calçava, já não era eu quem tomava o café pelas manhãs e seguia direto para o quarto. Não havia mais dias nos meus dias, apenas repetição, dia ou noite, chá ou cara no chão, repito, era tudo repetição. Havia perdido minha mente, agora perdi meu corpo. Me tornei máquina.

Alguns dias antes do final pensar em se aproximar, cogitei - como já disse, me era impossível pensar - sorrir e experimentar abrir a janela, sentir o vento, a brisa, mas não consegui. Não tinha tempo para perder. Gastava meus segundos com neurose, meus minutos com fixação e minhas horas se esvaiam por si só.

Era um domingo, aproximadamente às 14 horas. Chegou o tão esperado momento: O fim. Fiz o que tinha que ser feito e para tanto vendi minha alma, meu corpo, meu sangue, mas não sei até agora se foi o suficiente. Confesso que me surpreendi: é que não obstante as horas que eu acreditei ter desperdiçado, as estrelas que julguei que haviam morrido, estavam todas lá ainda. As pessoas ainda eram as mesmas, as árvores, os pássaros, as bitucas. Apenas eu mudei.

As coisas nunca mudam. Não importa o quão mártir você seja ou o quanto você queira que o mundo sucumba aos seus sacrifícios pessoais: as coisas não mudam, as pessoas não mudam. Talvez essa imutabilidade seja a única forma do Universo nos mostrar que todo sacrifício é inútil, que as coisas sempre serão as mesmas, e não importa o que aconteça conosco, a Terra vai continuar girando e girando e girando...

sábado, 16 de fevereiro de 2008

O artista

E é neste momento que o artista rouba a cena. Se eu fosse artista colocaria no papel o que meu coração insiste em gritar, meus ouvidos se forçam a musicar mas minha boca não consegue pronunciar.

Se eu fosse artista saberia escolher as palavras mais belas e as organizaria de modo que te fizessem corar, seu sorriso se abrir e seu peito arquejar.

Mas não sou artista, não sou escritor, muito menos poeta. Não há cartazes na rua com meu rosto estampado, não há sessão de autógrafos nem nada no meu nome que me façam identificar.

Mesmo assim faço questão de suar, perder noites de sono e horas de acordar apenas na esperança de ver o palco todo se iluminar com brilho de seus olhos acompanhados da ovação do seu riso, e, mesmo que tudo perdure a eternidade de um segundo, sentir em um abraço, mesmo que singelo, seu coração me aplaudir de pé.

Mas, apesar de tudo, há um momento em que o artista sai de cena e é obrigado a ver a cortina se fechar, a orquestra parar e os aplausos amainarem; sem reconhecer um rosto sequer e sem ter sorriso a almejar disfarça-se de sujeito comum e saí pela porta dos fundos rumo a um quarto de hotel qualquer, que de ser igual aos outros, nunca mais vai se lembrar.

Eu, que não sou artista, recolho-me ao bar, onde poderia ser tido por um artista qualquer; peço a bebida mais cara, acendo um cigarro, mas sem beber nem tragar durmo cansado de esperar alguma coisa que me prove que vale a pena esperar.

Ao acordar e lembrar que não sou artista, pego minha jaqueta, pago a conta do bar e ando na rua em busca de um rosto familiar qualquer.

Chego em casa com o Sol a me empurrar, jogo as chaves na mesa, que está posta e recito um poema de amor àquela que estás a dormir e sonhar.

Sonha que sou artista, ilumina meu palco com o brilho de seus olhos acompanhados da ovação do seu riso; e com entusiasmo de fã incondicional, me abraça pela eternidade, fazendo meu coração sentir seu coração aplaudindo de pé.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

O Último Ato (Cap. 3)

3 – Uma menina má.

No dia seguinte e nos próximos passei a buscá-la na escola, caminhávamos durante 45 minutos, ela me contava como havia sido o seu dia, o que iria fazer para o almoço enquanto eu contava sobre as coisas de quando ainda era pequena, como era o meu trabalho no exterior e também como era viver em Londres. Curioso, mas não me lembrava de como havia sido a minha estadia em Londres, parecia estar em uma outra época, distante da qual eu estava vivendo.

Yuki, como Marcio havia me contado, nunca comentava nada sobre Bianca nem Kenji, parecia evitar qualquer assunto que se relacionasse com eles. Eu também nunca forcei ela a falar nada a respeito, estava bom daquela maneira, afinal de contas, tinha todo o tempo do mundo. Pelo menos foi o que pensei.

Nunca pedia para entrar em sua casa, nem ela me convidava. Não me importava com isso, pois mesmo se me convidasse, não saberia o que falar ou fazer e também não queria mais ficar naquela casa, ainda não me sentia muito confortável com aquele ambiente tão melancólico que contrastava com as minhas lembranças felizes que tive.

Sexta feira chegou, perguntei a ela se não queria almoçar comigo, pois ficar cozinhando todos os dias deveria dar trabalho e queria passar um pouco mais de tempo com ela.

“Desculpe Tioshi.”, respondeu ela. Estávamos na saída da escola. “Mas eu preciso cozinhar para mamãe também. Ela está muito doente, sabe? Então não consegue fazer as tarefas da casa, por isso eu faço pra ajudar ela.”.

Aquela foi a primeira vez em dias que ouvi ela falar de Bianca, assim como a chamar de “mamãe”, fiquei surpreendido com a mudança de animo dela. Quando me viu ao sair da escola estava feliz, mas quando perguntei sobre almoçarmos fora, toda a tristeza pareceu envolver ela. Devia ser muito difícil mencionar a mãe de forma tão livre assim, pensei.

“Se eu não faço nada para mamãe comer, ela simplesmente fica sem comer nada, sabe? Então eu não quero que isso aconteça de novo.”

“De novo?” perguntei.

“Sim...”, sua voz ficou mais fraca, não sabia se deveria ou não falar, depois de um tempo ela respirou fundo e parou de andar, ainda olhando para o chão sem se virar. “Eu te explico depois, Tioshi.”.

Não exigi mais explicação, aquilo já era um avanço bem grande.

“Tioshi?”, perguntou ao chegarmos à entrada da casa dela.

“Sim?”, passando as sacolas das compras pra ela.

“Amanhã eu vou cumprir minha promessa, ok? Vou até a sua casa fazer um almoço bem gostoso.”.

“Hã?”.

“Eu só preciso saber onde você mora, eu consigo chegar lá, não se preocupe.”, disse sorrindo por entre o portão aberto, nenhum sinal de Bianca, nem nas janelas, nem na porta da casa, mas sentia que de alguma forma, ela estava acordada naquele lugar triste, cheio de memórias felizes que faziam a vida dela ainda mais difícil de se viver.

“Eu venho pegar você, naquela praçinha sabe? Isso se estiver tudo bem pra você, eu vou ter que sair de manhãzinha mesmo, então não vai ser problema dar uma passada aqui na volta.”.

“Ok, onze horas está bom para Tioshi?”.

“Claro, onze horas estarei na praçinha para te pegar.”.

“Hum!”, balançando a cabeça em afirmação. Com um sorriso de criança no rosto, ela fechou o portão e correu com as compras para dentro de casa.

O cheiro de comida caseira que não sentia, o que pareciam ser, há séculos, se espalhou pela casa onde meus pais moravam. Estava na cozinha sentado fumando um cigarro e lendo um livro que havia comprado durante a manhã, precisava ler algo por isso resolvi sair sábado logo cedo para comprar um e também para comprar uma outra coisa mais importante. Yuki cantarolava uma canção que eu não conhecia enquanto picava alguns legumes, me perguntei se ela ficava tão feliz assim a ponto de cantarolar enquanto cozinhava na casa dela com uma mãe que havia esquecido da sua existência.

“Está muito bom!”, e realmente estava, talvez pelo fato de fazer anos que não comia nada caseiro. Fiquei impressionado com a habilidade de cozinhar da Yuki. “Muito bom mesmo! É incrível! Você é uma cozinheira muito boa, Yuki.”.

“Tioshi acha mesmo?!”, soltou uma risadinha contente. “No começo eu queimava tudo, mas aprendi com o tempo. Agora eu posso fazer qualquer receita que eu ver.”.

“Isso é bom, muito bom. Tioshi só comia comida congelada e macarrão instantâneo, nunca fui bom cozinheiro, sabe.”, dando mais uma garfada na comida.

Comemos em silêncio. Quando terminei retirei os pratos e coloquei sorvete em dois potes, era de flocos, ela costumava gostar desse sabor. Ao sentar-me vi ela colocar na boca um pedaço grande, não devia tomar muito sorvete, pensei.

“Me diga, Yuki?”, perguntei para ela, ainda sem tocar no meu pote com o sorvete.

“Sim? Tioshi?”.

“Amanhã é o seu aniversário, não? O que você pretende fazer? Uma festinha ou algo assim?”.

“Hum...”, pensou por um momento. “Eu não faço festas no meu aniversário, geralmente eu faço um bolo pequeno e ganho alguns doces do dono do mercado perto de casa, aquele que agente sempre vai. Não faço mais nada.”

Fiquei imaginando a cena dela na casa, fazendo um bolo e comendo sozinha para celebrar o seu aniversário. Senti uma pontada em meu coração com aquele pensamento, e estremeci. Nem mesmo eu teria tanta força quanto ela tem para continuar vivendo assim, teria enlouquecido antes.

“E a sua mãe?”, perguntei. “Vocês não comemoram juntas?”, não custava nada tentar essa pergunta, queria ver a reação dela, no fundo, acredito, eu ainda não tinha admitido completamente aquela situação.

“A mamãe...”, disse sem tirar os olhos da última bola de sorvete do pote que eu havia colocado pra ela, estava derretendo com as mãos dela o segurando. Nunca ouve continuação para aquele pensamento, não conseguia imaginar também o que ela diria, nem mesmo imaginar a tristeza que havia se acumulado naquele coraçãozinho tão pequeno.

“De qualquer maneira.”, falei olhando para ela, quebrando o longo silencio que tinha se posto entre nós. “Porque você não vem comigo à tarde depois do almoço? Podemos sair para comemorar agora que estou aqui. Podemos ir para o parque, depois para o cinema, ou onde você quiser. É domingo mesmo.”, fiquei animado com a minha proposta, queria dar o presente para ela que comprei durante a manhã também, mas acima de tudo, queria vê-la feliz, não aquela felicidade forçada que impunha para ela mesma, mas uma genuína, sem preocupações. No entanto a reação dela foi tudo menos alegria, ainda estava triste olhando para o pote.

“Por quê?”, perguntou ela começando a soluçar.

Falei algo errado?, pensei. “Como assim por quê?”.

“Por que você está fazendo isso?”, as lágrimas caiam, ainda não olhava para mim. “Por que você está fazendo isso por mim? Por que perde o seu tempo, Tioshi?”.

“Como assim? Eu não to entendendo. Como assim perdendo meu tempo? É o seu aniversário, eu sou o seu tio afinal de contas, então como assim “Por quê?”. Você não quer ir? Se for é só falar Yuki. Não tem problema nenhum.”, estava espantado pela reação tão inesperada dela, mas consegui formar um sorriso. A verdade é que queria passar mais tempo com ela, talvez mais por mim do que por ela, queria me redimir com Kenji, sentia essa necessidade.

“Eu sou uma menina má...”, disse ela em meio aos seus soluços e lágrimas. “Papai foi embora por minha causa, porque não ajudava a mamãe. E agora eu posso ajudar a mamãe, Tioshi! Eu to ajudando a mamãe...”, colocou a cabeça entre as mãos. “Não é? Eu to ajudando a mamãe! Então porque o papai não volta? Porque a mamãe não me reconhece de novo?!”.

Não consegui me mover, as pernas fraquejaram, me senti leve e pesado ao mesmo tempo, a cabeça girava, parecia a mesma coisa que senti quando recebi a noticia da Bianca de que Kenji havia morrido. Controlei a respiração, sentei-me ao lado dela e a abracei contra o peito. Sentia as lágrimas morna molhando a minha camisa, passava a mão pelo seu cabelo, encostei o queixo em sua cabeça e deixei que as minhas lágrimas escorressem também.

No dia seguinte após o almoço visitamos vários lugares, primeiro levei ela ao parque de diversão, um ônibus fretado saia perto da casa dela o que facilitou as coisas, quando voltamos já era fim de tarde, vimos um filme no cinema, que eu dormi e por isso ela deu risada, durante a janta ela me contou como era o filme, incrivelmente ele parecia ser de ação o que me surpreendeu por eu ter dormido, mas pelo menos deixou um assunto bem amplo que durou a janta inteira e, mais importante, realmente senti que Yuki estava se divertindo. Contava alegre sobre os feitos do herói da historia, de como ele resgatava a mulher que amava e se casavam no final e os bandidos acabaram derrotados.

Voltamos em um ônibus vazio do centro, ficamos sentados no fundo, ela estava abraçada em meu braço direito, com a cabeça encostada no meu ombro.

“Queria que esse dia nunca acabasse.”, murmurou enquanto apertava mais firme seus braços em volta do meu. “Queria que papai estivesse aqui.”, e adormeceu.

Segunda feira esperei em frente ao portão da escola como de costume. Após todos partirem, não vi sinal de Yuki, pensei que tivesse faltado. Quando comecei a andar em direção a casa dela, fui parado por uma mulher que saia dos portões da escola.

“Você está esperando por alguém?”, perguntou ela quando se aproximou, seu olhar era simpático e tranqüilo.

“Sim, mas acho que ela faltou hoje.”.

“E quem seria ela?”.

“Yuki. Yuki Kanekawa.”.

Ela olhou um pouco assusta para mim ao ouvir o nome, mas logo voltou ao seu olhar simpático. “Desculpe, mas o senhor é?”.

“Shinji. Shinji Ichinose. Sou o padrinho dela.”.

“Shinji.”, pensou por um momento. “Ah! Ela me falou sobre você. Você deve ser muito especial para ela. Yuki esta sempre empolgada contando a seu respeito, ela até me contou uma de suas historias.”. Estendeu a mão para me cumprimentar. “Camila. Sou a diretora da escola. Por favor, vamos a minha sala.”.

Após nos cumprimentar fui a sua pequena sala, com muitos armários velhos de arquivos, uma estante de livros dos quais nunca ouvi falar. Sentei-me em uma cadeira em frente a mesa, do lado oposto em que ela estava sentada.

“Senhor Shinji.”.

“Só Shinji está bom.”.

“Shinji.”, fez uma pausa, parecia preocupada e por isso acabei ficando também. “Você não soube?”.

“Do que?”, o coração bateu forte, coisa boa não podia ser. Mesmo assim não queria acreditar, o dia anterior foi tão bom que, ao terminar, acreditava que as coisas iriam melhorar para Yuki.

“Bianca passou mal, foi parar no Hospital. Yuki ligou e me contou que ficaria com ela até se recuperar.”, parou por um instante e respirou fundo. “Sinto muito.”.

Realmente, foi uma ilusão acreditar que as coisas podiam melhorar. Pensamento positivo, Shinji. Você ainda tem tempo. Pensei. Tempo? Tempo para que? Por um momento uma lembrança voltou, mas tão rápido quanto veio, ela se foi. Estava esquecendo algo importante, só não podia me recordar do que.

“Em que hospital elas estão?”.


--Fim do capitulo 3

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

O Último Ato (Cap. 2 - Parte 2)

Ao passar em frente a entrada da casa vizinha reparei que um senhor de idade estava me observado apoiado ao portão. Quando cruzamos nossos olhares ele sorriu.

“É parente da Bianca?”.

“Não, eu sou o padrinho da Yuki, mais de consideração da família. Amigo do pai dela e da Bianca também.”, respondi me virando para ele.

“Nunca te vi antes por aqui.”, disse um pouco desconfiado.

“Estive fora por seis anos, voltei ontem e vim visitá-los.”.

“A sim.”, pensou por um momento. “Padrinho da Yuki...”, esfregou seu queixo com a mão direita mantendo o apoio no portão com a esquerda. “Gostaria de entrar? Eu gostaria de conversar um pouco com você.”.

Pensei por um momento antes de aceitar. Era um senhor velho e simpático, não vi mal em aceitar o convite, também não iria fazer nada nem hoje nem nos próximos dias. Confesso que estava curioso também, queria saber mais o que eu perdi em minha ausência.

“Uma garotinha adorável.”, disse ao colocar bolachas e café na mesa de centro da sala, se sentou em uma poltrona em frente do sofá em que eu havia me acomodado. “Yuki, eu digo. Está sempre sorrindo, feliz. Cumprimenta a todos do bairro e ajuda com as compras. Muito adorável. Mas...”.

“Mas?”.

“A mãe dela, Bianca. Muito triste sua historia, soubemos pelos seus familiares.”, tomou um gole do café. “Íamos visitar Yuki algumas vezes, mas sempre recebíamos a noticia da Bianca que não conhecia nenhuma Yuki, ou tinha alguma filha.”.

“Vocês não fizeram nada a respeito?”.

“Senhor...”, olhando para mim esperando que eu me apresentasse.

“A sim. Me desculpe. Meu nome é Shinji.”, me levantei e estendi a mão.

“Marcio.” Nos cumprimentamos, ao se sentar novamente continuou. “Como sabe todos que moram nesse bairro são velhos. Ninguém tinha muito contato com a família da Yuki, víamos as festas há muito tempo, conversávamos um pouco com os parentes dela, mas só quando aquele rapaz - Kenji não é esse o nome do pai? – parou de aparecer no bairro que Yuki passou a ficar mais tempo fora de casa, caminhava pelo bairro e parava na praça próximo ao mercado, então muitos do bairro iam para lá aproveitar os dias de sol e acabamos a conhecendo melhor. Apesar de tudo ela não fala nada a respeito da mãe, só que está muito doente.

“Ao passar dos dias notamos que ela voltava sozinha da escola,” continuou. “e é uma longa caminhada de lá para cá, tentei convencê-la voltar de ônibus, mas ela disse que preferia a caminhada, assim podia pensar no que fazer para o almoço. Até alguns anos atrás eu acompanhava todo o percurso com ela, mas como pode ver já estou velho.”, e olhou para a bengala ao lado de sua poltrona como se confirmasse o que disse. “Mesmo assim todos do bairro se apegaram a ela, e depois da mãe dela falar aquelas coisas estranhas de não conhecer a própria filha, ficamos muito preocupados.

“Os parentes vinham visitar ela constantemente, e descobrimos por eles que após a partida do marido ela entrou em uma profunda depressão, sua saúde fraca não ajudou também. Além de tudo ela esqueceu a existência da filha, apesar da Yuki fazer toda as tarefas de casa, ela simplesmente ignora a presença da filha.”.

“E a família dela não tentou fazer nada?”, perguntei tomando o resto do café que esfriava, peguei uma bolacha, estava muito bom.

“Diziam estar cuidando das coisas, que era melhor deixar ela sozinha. Depois da noticia da morte do marido os médicos disseram que se tirassem a filha dela, poderia ser pior, ela poderia se matar.”, pegou uma bolacha também, mordiscou um pedaço e ficou segurando o resto. “A família ficou sem saída, não queriam enviar a Bianca para um asilo, mesmo porque sabiam o quanto ela amava Kenji e a filha, por isso pensaram que era só uma questão de tempo. Mas conforme os anos passaram, menos e menos víamos os familiares a visitarem, até que um dia simplesmente pararam, esqueceram a existência dela e da Yuki.”.

Não pareciam ser os mesmos familiares dos quais me lembrava. Estavam sempre tão unidos, seriam capazes de simplesmente esquecer Yuki e a Bianca. Mas todos temos problemas, talvez conforme o tempo passou e as dificuldades aumentaram para todos eles foram deixando elas de lado, pensando que o tempo curaria a situação de Bianca. Estavam errados, e eu ainda mais, estive errado antes mesmo deles, errei ao sair do país sem tentar mais, ou pelo menos por perder o contato com eles.

“Não parece que é algo que a família dela fizesse. Esquecer elas dessa maneira, quero dizer.”

“E não foi.”. Comeu o resto da bolacha. “Uma hora nos cansamos, senhor Shinji. Todos tem seu limite, o da família dela foi longo. Como ultimo recurso queriam deixar Bianca em um asilo, a mãe impediu isso, houve uma grande gritaria, Yuki chorava e a Bianca ficava quieta como se estivesse em um transe, em um outro mundo, entende o que eu digo? A mãe até continuou a vir por mais tempo, vinha todos os finais de semana, passava um tempo com a filha e depois ia para o parque com a neta. Essas visitas durante os fins de semana mudaram para uma vez ao mês, depois uma vez a cada dois meses, até que parou de visitar, acredito que ela também já estivesse muito velha para fazer as longas visitas.”

“Entendo, então...”, não conseguia me focar em nada, ainda estava pensando nas coisas que ele havia me contado, tentando reconstruir aquelas lembranças através das quais me narrou. Ele esperou que eu continuasse, mas não havia mais nada para falar. Me levantei e preparei para sair.

“Não é culpa dela senhor Shinji. Não culpe Bianca.”, disse se levantando, indo abrir a porta para mim. “Ela devia amar muito o Kenji, pelas historias que ouvi, eram como almas gêmeas. Talvez eles se completassem, cada um com uma asa, e quando ele se foi, ela perdeu a sua outra asa e com isso o seu rumo neste mundo. Desculpe senhor Shinji. Apenas um devaneio de um velho, não de atenção.”

“Não se preocupe.”, passando pelo portão olhei para a rua, já era fim de tarde. Vi a casa de Bianca mais uma vez. “A única pessoa que eu culpo, sou eu mesmo por ter permitido que tal coisa acontecesse.”.

Antes de me despedir do Marcio no dia anterior perguntei onde Yuki estudava. Ele me deu o endereço e agora estava em frente a escola.

Estava esperando pelo sinal do término das aulas do dia, haviam muitos pais em volta e, assim que o portão abriu, muitas crianças saíram, dificultando a minha visão, foi então que me lembrei: não sabia como ela estaria agora com doze anos de idade. Isso me assustou, não pensei nisso e agora não sabia o que fazer, tinha que observar todas aquelas dezenas de crianças saindo e imaginar qual seria a Yuki. Me aproximei junto aos pais, e observei da forma mais atenta possível, a única certeza que tinha era de que ela sairia de lá andando e ninguém estaria esperando por ela.

“Tioshi?”, ouço a voz de uma menina por entre a multidão de crianças. “Tioshi?!”

Ela sai da multidão e vem correndo em minha direção, quando para na minha frente fica me olhando com os olhos bem abertos e um sorriso largo no rosto.

“Yuki?”

“Tioshi! É você! Eu sabia!”, pulou pra me abraçar, me curvei um pouco devido a nossa diferença de altura, ela estava completamente diferente de como a lembrava, seis anos realmente foi bastante tempo.

“Yuki! Como você cresceu menina!”, disse após solta-lá do abraço.

“Hihihi. O que você está fazendo aqui?”

“Fiquei sabendo que você estudava aqui, e como estava andando na região resolvi ver se te encontrava.”, respondi enquanto caminhávamos para fora da multidão de crianças e pais que se encontravam para voltar para casa. “Mas acho que foi o contrario, né? Como você sabia que era eu?”.

“Sabe que eu não sei?”, respondeu ao passar pelo ultimo grupo de mães. “Tioshi é Tioshi, eu olhei para você e a primeira coisa que me veio à cabeça foi você! Tioshi. Eu não me lembrava mais do seu rosto, mas no fundo eu senti que era você!”.

“Ainda não perdeu a mania de me chamar assim?”

“Desculpa.”, ficou um pouco triste, parecia que ela sentia ter me ofendido e estava arrependida, seus olhos baixaram para a rua e fez silêncio.

“Para que as desculpas? Não me importo mais que você me chame de Tioshi, pra falar a verdade até fiquei muito feliz por ter ouvido você me chamar assim de novo.”.

“Sério?!”, ficou toda feliz.

“Sim.”, ela começou a andar e eu acompanhei seu ritmo.

“Tioshi vai me acompanhar?”.

“É claro, faz tempo que não conversamos. Vamos aproveitar a caminhada para falar um pouco.”.

“Eu tenho que passar no mercado antes de ir para casa, Tioshi não se importa?”.

“Claro que não!”.

“Onde você esteve todo esse tempo, Tioshi?”, perguntou enquanto caminhávamos em direção ao mercado, estava sendo guiado por ela.

“Trabalhando no exterior.”

Estava feliz ao ver que ela estava com saúde e animada apesar da situação. Mas no fundo, sabia que estava triste e que guardava toda essa tristeza para si, para não preocupar os outros. Ela havia se tornado uma menina muito forte, Kenji, assim como eu, estaria muito orgulhoso dela se estivesse vivo. Kenji... Ainda não conseguia aceitar a situação, a morte dele, o estado de Bianca e a tristeza e bravura de Yuki. Nenhuma criança deveria passar por algo assim.

O mercado era no bairro onde a casa dela ficava, era um lugar pequeno, típico mercadinho de bairro residencial. Ela sabia exatamente onde procurar o que queria, provavelmente, pensei, por fazer compras regularmente lá.

“Desculpa, Tioshi.”, falou parando em frente de onde ficavam os legumes. “Eu não posso convidar você para almoçar em casa...”.

“Ora, não se preocupe com isso, eu vou almoçar em casa hoje.”.

Fizemos silêncio até ela terminar de pegar as coisas que precisava e passar pelo caixa do mercado, até que olhou para mim enquanto guardava as compras na sacola.

“Prometo para Tioshi que vou fazer um almoço muito gostoso qualquer dia. Eu sou boa cozinheira, sabe?”

Parei por um momento, com a alface em uma mão e sacola na outra. “Tenho certeza que sim.”, e quando a guardei na sacola continuei: “Hum! Eu vou aguardar ansioso por isso então.”.

“Ok! É uma promessa, então!”. Saímos com as sacolas do mercado.

Nos despedimos na frente da casa dela. Ela não me convidou para entrar, também não insisti para isso. De certa forma foi bom ter visitado Bianca antes, se não o tivesse feito, provavelmente iria pedir para entrar e vê-la, com isso as coisas poderiam se agravar, principalmente para Yuki que estava fazendo força para não me contar nada talvez para não me preocupar com ela.

“Amanhã eu vou buscar você de novo na escola, tudo bem?”.

“Não quero atrapalhar, Tioshi. Por favor, não precisa. Eu já estou acostumada.”, disse ao entrar pelo portão.

“Não vai me atrapalhar, eu estou de folga...”, cocei a cabeça meio sem jeito e dei uma risada. “Na realidade estou de férias e não tenho nada para fazer, é serio. Amanhã eu venho te pegar, me espera na entrada da escola, ok?”.

Yuki parou por um momento, pensou e pensou, mas não conseguiu esconder a alegria. Tentou fazer uma cara séria, mas não conseguiu. “Se Tioshi diz que não vai atrapalhar então tudo bem.”.

“Até amanhã então, Yuki.”.


--Fim do capitulo 2.