sábado, 16 de fevereiro de 2008

O artista

E é neste momento que o artista rouba a cena. Se eu fosse artista colocaria no papel o que meu coração insiste em gritar, meus ouvidos se forçam a musicar mas minha boca não consegue pronunciar.

Se eu fosse artista saberia escolher as palavras mais belas e as organizaria de modo que te fizessem corar, seu sorriso se abrir e seu peito arquejar.

Mas não sou artista, não sou escritor, muito menos poeta. Não há cartazes na rua com meu rosto estampado, não há sessão de autógrafos nem nada no meu nome que me façam identificar.

Mesmo assim faço questão de suar, perder noites de sono e horas de acordar apenas na esperança de ver o palco todo se iluminar com brilho de seus olhos acompanhados da ovação do seu riso, e, mesmo que tudo perdure a eternidade de um segundo, sentir em um abraço, mesmo que singelo, seu coração me aplaudir de pé.

Mas, apesar de tudo, há um momento em que o artista sai de cena e é obrigado a ver a cortina se fechar, a orquestra parar e os aplausos amainarem; sem reconhecer um rosto sequer e sem ter sorriso a almejar disfarça-se de sujeito comum e saí pela porta dos fundos rumo a um quarto de hotel qualquer, que de ser igual aos outros, nunca mais vai se lembrar.

Eu, que não sou artista, recolho-me ao bar, onde poderia ser tido por um artista qualquer; peço a bebida mais cara, acendo um cigarro, mas sem beber nem tragar durmo cansado de esperar alguma coisa que me prove que vale a pena esperar.

Ao acordar e lembrar que não sou artista, pego minha jaqueta, pago a conta do bar e ando na rua em busca de um rosto familiar qualquer.

Chego em casa com o Sol a me empurrar, jogo as chaves na mesa, que está posta e recito um poema de amor àquela que estás a dormir e sonhar.

Sonha que sou artista, ilumina meu palco com o brilho de seus olhos acompanhados da ovação do seu riso; e com entusiasmo de fã incondicional, me abraça pela eternidade, fazendo meu coração sentir seu coração aplaudindo de pé.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

O Último Ato (Cap. 3)

3 – Uma menina má.

No dia seguinte e nos próximos passei a buscá-la na escola, caminhávamos durante 45 minutos, ela me contava como havia sido o seu dia, o que iria fazer para o almoço enquanto eu contava sobre as coisas de quando ainda era pequena, como era o meu trabalho no exterior e também como era viver em Londres. Curioso, mas não me lembrava de como havia sido a minha estadia em Londres, parecia estar em uma outra época, distante da qual eu estava vivendo.

Yuki, como Marcio havia me contado, nunca comentava nada sobre Bianca nem Kenji, parecia evitar qualquer assunto que se relacionasse com eles. Eu também nunca forcei ela a falar nada a respeito, estava bom daquela maneira, afinal de contas, tinha todo o tempo do mundo. Pelo menos foi o que pensei.

Nunca pedia para entrar em sua casa, nem ela me convidava. Não me importava com isso, pois mesmo se me convidasse, não saberia o que falar ou fazer e também não queria mais ficar naquela casa, ainda não me sentia muito confortável com aquele ambiente tão melancólico que contrastava com as minhas lembranças felizes que tive.

Sexta feira chegou, perguntei a ela se não queria almoçar comigo, pois ficar cozinhando todos os dias deveria dar trabalho e queria passar um pouco mais de tempo com ela.

“Desculpe Tioshi.”, respondeu ela. Estávamos na saída da escola. “Mas eu preciso cozinhar para mamãe também. Ela está muito doente, sabe? Então não consegue fazer as tarefas da casa, por isso eu faço pra ajudar ela.”.

Aquela foi a primeira vez em dias que ouvi ela falar de Bianca, assim como a chamar de “mamãe”, fiquei surpreendido com a mudança de animo dela. Quando me viu ao sair da escola estava feliz, mas quando perguntei sobre almoçarmos fora, toda a tristeza pareceu envolver ela. Devia ser muito difícil mencionar a mãe de forma tão livre assim, pensei.

“Se eu não faço nada para mamãe comer, ela simplesmente fica sem comer nada, sabe? Então eu não quero que isso aconteça de novo.”

“De novo?” perguntei.

“Sim...”, sua voz ficou mais fraca, não sabia se deveria ou não falar, depois de um tempo ela respirou fundo e parou de andar, ainda olhando para o chão sem se virar. “Eu te explico depois, Tioshi.”.

Não exigi mais explicação, aquilo já era um avanço bem grande.

“Tioshi?”, perguntou ao chegarmos à entrada da casa dela.

“Sim?”, passando as sacolas das compras pra ela.

“Amanhã eu vou cumprir minha promessa, ok? Vou até a sua casa fazer um almoço bem gostoso.”.

“Hã?”.

“Eu só preciso saber onde você mora, eu consigo chegar lá, não se preocupe.”, disse sorrindo por entre o portão aberto, nenhum sinal de Bianca, nem nas janelas, nem na porta da casa, mas sentia que de alguma forma, ela estava acordada naquele lugar triste, cheio de memórias felizes que faziam a vida dela ainda mais difícil de se viver.

“Eu venho pegar você, naquela praçinha sabe? Isso se estiver tudo bem pra você, eu vou ter que sair de manhãzinha mesmo, então não vai ser problema dar uma passada aqui na volta.”.

“Ok, onze horas está bom para Tioshi?”.

“Claro, onze horas estarei na praçinha para te pegar.”.

“Hum!”, balançando a cabeça em afirmação. Com um sorriso de criança no rosto, ela fechou o portão e correu com as compras para dentro de casa.

O cheiro de comida caseira que não sentia, o que pareciam ser, há séculos, se espalhou pela casa onde meus pais moravam. Estava na cozinha sentado fumando um cigarro e lendo um livro que havia comprado durante a manhã, precisava ler algo por isso resolvi sair sábado logo cedo para comprar um e também para comprar uma outra coisa mais importante. Yuki cantarolava uma canção que eu não conhecia enquanto picava alguns legumes, me perguntei se ela ficava tão feliz assim a ponto de cantarolar enquanto cozinhava na casa dela com uma mãe que havia esquecido da sua existência.

“Está muito bom!”, e realmente estava, talvez pelo fato de fazer anos que não comia nada caseiro. Fiquei impressionado com a habilidade de cozinhar da Yuki. “Muito bom mesmo! É incrível! Você é uma cozinheira muito boa, Yuki.”.

“Tioshi acha mesmo?!”, soltou uma risadinha contente. “No começo eu queimava tudo, mas aprendi com o tempo. Agora eu posso fazer qualquer receita que eu ver.”.

“Isso é bom, muito bom. Tioshi só comia comida congelada e macarrão instantâneo, nunca fui bom cozinheiro, sabe.”, dando mais uma garfada na comida.

Comemos em silêncio. Quando terminei retirei os pratos e coloquei sorvete em dois potes, era de flocos, ela costumava gostar desse sabor. Ao sentar-me vi ela colocar na boca um pedaço grande, não devia tomar muito sorvete, pensei.

“Me diga, Yuki?”, perguntei para ela, ainda sem tocar no meu pote com o sorvete.

“Sim? Tioshi?”.

“Amanhã é o seu aniversário, não? O que você pretende fazer? Uma festinha ou algo assim?”.

“Hum...”, pensou por um momento. “Eu não faço festas no meu aniversário, geralmente eu faço um bolo pequeno e ganho alguns doces do dono do mercado perto de casa, aquele que agente sempre vai. Não faço mais nada.”

Fiquei imaginando a cena dela na casa, fazendo um bolo e comendo sozinha para celebrar o seu aniversário. Senti uma pontada em meu coração com aquele pensamento, e estremeci. Nem mesmo eu teria tanta força quanto ela tem para continuar vivendo assim, teria enlouquecido antes.

“E a sua mãe?”, perguntei. “Vocês não comemoram juntas?”, não custava nada tentar essa pergunta, queria ver a reação dela, no fundo, acredito, eu ainda não tinha admitido completamente aquela situação.

“A mamãe...”, disse sem tirar os olhos da última bola de sorvete do pote que eu havia colocado pra ela, estava derretendo com as mãos dela o segurando. Nunca ouve continuação para aquele pensamento, não conseguia imaginar também o que ela diria, nem mesmo imaginar a tristeza que havia se acumulado naquele coraçãozinho tão pequeno.

“De qualquer maneira.”, falei olhando para ela, quebrando o longo silencio que tinha se posto entre nós. “Porque você não vem comigo à tarde depois do almoço? Podemos sair para comemorar agora que estou aqui. Podemos ir para o parque, depois para o cinema, ou onde você quiser. É domingo mesmo.”, fiquei animado com a minha proposta, queria dar o presente para ela que comprei durante a manhã também, mas acima de tudo, queria vê-la feliz, não aquela felicidade forçada que impunha para ela mesma, mas uma genuína, sem preocupações. No entanto a reação dela foi tudo menos alegria, ainda estava triste olhando para o pote.

“Por quê?”, perguntou ela começando a soluçar.

Falei algo errado?, pensei. “Como assim por quê?”.

“Por que você está fazendo isso?”, as lágrimas caiam, ainda não olhava para mim. “Por que você está fazendo isso por mim? Por que perde o seu tempo, Tioshi?”.

“Como assim? Eu não to entendendo. Como assim perdendo meu tempo? É o seu aniversário, eu sou o seu tio afinal de contas, então como assim “Por quê?”. Você não quer ir? Se for é só falar Yuki. Não tem problema nenhum.”, estava espantado pela reação tão inesperada dela, mas consegui formar um sorriso. A verdade é que queria passar mais tempo com ela, talvez mais por mim do que por ela, queria me redimir com Kenji, sentia essa necessidade.

“Eu sou uma menina má...”, disse ela em meio aos seus soluços e lágrimas. “Papai foi embora por minha causa, porque não ajudava a mamãe. E agora eu posso ajudar a mamãe, Tioshi! Eu to ajudando a mamãe...”, colocou a cabeça entre as mãos. “Não é? Eu to ajudando a mamãe! Então porque o papai não volta? Porque a mamãe não me reconhece de novo?!”.

Não consegui me mover, as pernas fraquejaram, me senti leve e pesado ao mesmo tempo, a cabeça girava, parecia a mesma coisa que senti quando recebi a noticia da Bianca de que Kenji havia morrido. Controlei a respiração, sentei-me ao lado dela e a abracei contra o peito. Sentia as lágrimas morna molhando a minha camisa, passava a mão pelo seu cabelo, encostei o queixo em sua cabeça e deixei que as minhas lágrimas escorressem também.

No dia seguinte após o almoço visitamos vários lugares, primeiro levei ela ao parque de diversão, um ônibus fretado saia perto da casa dela o que facilitou as coisas, quando voltamos já era fim de tarde, vimos um filme no cinema, que eu dormi e por isso ela deu risada, durante a janta ela me contou como era o filme, incrivelmente ele parecia ser de ação o que me surpreendeu por eu ter dormido, mas pelo menos deixou um assunto bem amplo que durou a janta inteira e, mais importante, realmente senti que Yuki estava se divertindo. Contava alegre sobre os feitos do herói da historia, de como ele resgatava a mulher que amava e se casavam no final e os bandidos acabaram derrotados.

Voltamos em um ônibus vazio do centro, ficamos sentados no fundo, ela estava abraçada em meu braço direito, com a cabeça encostada no meu ombro.

“Queria que esse dia nunca acabasse.”, murmurou enquanto apertava mais firme seus braços em volta do meu. “Queria que papai estivesse aqui.”, e adormeceu.

Segunda feira esperei em frente ao portão da escola como de costume. Após todos partirem, não vi sinal de Yuki, pensei que tivesse faltado. Quando comecei a andar em direção a casa dela, fui parado por uma mulher que saia dos portões da escola.

“Você está esperando por alguém?”, perguntou ela quando se aproximou, seu olhar era simpático e tranqüilo.

“Sim, mas acho que ela faltou hoje.”.

“E quem seria ela?”.

“Yuki. Yuki Kanekawa.”.

Ela olhou um pouco assusta para mim ao ouvir o nome, mas logo voltou ao seu olhar simpático. “Desculpe, mas o senhor é?”.

“Shinji. Shinji Ichinose. Sou o padrinho dela.”.

“Shinji.”, pensou por um momento. “Ah! Ela me falou sobre você. Você deve ser muito especial para ela. Yuki esta sempre empolgada contando a seu respeito, ela até me contou uma de suas historias.”. Estendeu a mão para me cumprimentar. “Camila. Sou a diretora da escola. Por favor, vamos a minha sala.”.

Após nos cumprimentar fui a sua pequena sala, com muitos armários velhos de arquivos, uma estante de livros dos quais nunca ouvi falar. Sentei-me em uma cadeira em frente a mesa, do lado oposto em que ela estava sentada.

“Senhor Shinji.”.

“Só Shinji está bom.”.

“Shinji.”, fez uma pausa, parecia preocupada e por isso acabei ficando também. “Você não soube?”.

“Do que?”, o coração bateu forte, coisa boa não podia ser. Mesmo assim não queria acreditar, o dia anterior foi tão bom que, ao terminar, acreditava que as coisas iriam melhorar para Yuki.

“Bianca passou mal, foi parar no Hospital. Yuki ligou e me contou que ficaria com ela até se recuperar.”, parou por um instante e respirou fundo. “Sinto muito.”.

Realmente, foi uma ilusão acreditar que as coisas podiam melhorar. Pensamento positivo, Shinji. Você ainda tem tempo. Pensei. Tempo? Tempo para que? Por um momento uma lembrança voltou, mas tão rápido quanto veio, ela se foi. Estava esquecendo algo importante, só não podia me recordar do que.

“Em que hospital elas estão?”.


--Fim do capitulo 3

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

O Último Ato (Cap. 2 - Parte 2)

Ao passar em frente a entrada da casa vizinha reparei que um senhor de idade estava me observado apoiado ao portão. Quando cruzamos nossos olhares ele sorriu.

“É parente da Bianca?”.

“Não, eu sou o padrinho da Yuki, mais de consideração da família. Amigo do pai dela e da Bianca também.”, respondi me virando para ele.

“Nunca te vi antes por aqui.”, disse um pouco desconfiado.

“Estive fora por seis anos, voltei ontem e vim visitá-los.”.

“A sim.”, pensou por um momento. “Padrinho da Yuki...”, esfregou seu queixo com a mão direita mantendo o apoio no portão com a esquerda. “Gostaria de entrar? Eu gostaria de conversar um pouco com você.”.

Pensei por um momento antes de aceitar. Era um senhor velho e simpático, não vi mal em aceitar o convite, também não iria fazer nada nem hoje nem nos próximos dias. Confesso que estava curioso também, queria saber mais o que eu perdi em minha ausência.

“Uma garotinha adorável.”, disse ao colocar bolachas e café na mesa de centro da sala, se sentou em uma poltrona em frente do sofá em que eu havia me acomodado. “Yuki, eu digo. Está sempre sorrindo, feliz. Cumprimenta a todos do bairro e ajuda com as compras. Muito adorável. Mas...”.

“Mas?”.

“A mãe dela, Bianca. Muito triste sua historia, soubemos pelos seus familiares.”, tomou um gole do café. “Íamos visitar Yuki algumas vezes, mas sempre recebíamos a noticia da Bianca que não conhecia nenhuma Yuki, ou tinha alguma filha.”.

“Vocês não fizeram nada a respeito?”.

“Senhor...”, olhando para mim esperando que eu me apresentasse.

“A sim. Me desculpe. Meu nome é Shinji.”, me levantei e estendi a mão.

“Marcio.” Nos cumprimentamos, ao se sentar novamente continuou. “Como sabe todos que moram nesse bairro são velhos. Ninguém tinha muito contato com a família da Yuki, víamos as festas há muito tempo, conversávamos um pouco com os parentes dela, mas só quando aquele rapaz - Kenji não é esse o nome do pai? – parou de aparecer no bairro que Yuki passou a ficar mais tempo fora de casa, caminhava pelo bairro e parava na praça próximo ao mercado, então muitos do bairro iam para lá aproveitar os dias de sol e acabamos a conhecendo melhor. Apesar de tudo ela não fala nada a respeito da mãe, só que está muito doente.

“Ao passar dos dias notamos que ela voltava sozinha da escola,” continuou. “e é uma longa caminhada de lá para cá, tentei convencê-la voltar de ônibus, mas ela disse que preferia a caminhada, assim podia pensar no que fazer para o almoço. Até alguns anos atrás eu acompanhava todo o percurso com ela, mas como pode ver já estou velho.”, e olhou para a bengala ao lado de sua poltrona como se confirmasse o que disse. “Mesmo assim todos do bairro se apegaram a ela, e depois da mãe dela falar aquelas coisas estranhas de não conhecer a própria filha, ficamos muito preocupados.

“Os parentes vinham visitar ela constantemente, e descobrimos por eles que após a partida do marido ela entrou em uma profunda depressão, sua saúde fraca não ajudou também. Além de tudo ela esqueceu a existência da filha, apesar da Yuki fazer toda as tarefas de casa, ela simplesmente ignora a presença da filha.”.

“E a família dela não tentou fazer nada?”, perguntei tomando o resto do café que esfriava, peguei uma bolacha, estava muito bom.

“Diziam estar cuidando das coisas, que era melhor deixar ela sozinha. Depois da noticia da morte do marido os médicos disseram que se tirassem a filha dela, poderia ser pior, ela poderia se matar.”, pegou uma bolacha também, mordiscou um pedaço e ficou segurando o resto. “A família ficou sem saída, não queriam enviar a Bianca para um asilo, mesmo porque sabiam o quanto ela amava Kenji e a filha, por isso pensaram que era só uma questão de tempo. Mas conforme os anos passaram, menos e menos víamos os familiares a visitarem, até que um dia simplesmente pararam, esqueceram a existência dela e da Yuki.”.

Não pareciam ser os mesmos familiares dos quais me lembrava. Estavam sempre tão unidos, seriam capazes de simplesmente esquecer Yuki e a Bianca. Mas todos temos problemas, talvez conforme o tempo passou e as dificuldades aumentaram para todos eles foram deixando elas de lado, pensando que o tempo curaria a situação de Bianca. Estavam errados, e eu ainda mais, estive errado antes mesmo deles, errei ao sair do país sem tentar mais, ou pelo menos por perder o contato com eles.

“Não parece que é algo que a família dela fizesse. Esquecer elas dessa maneira, quero dizer.”

“E não foi.”. Comeu o resto da bolacha. “Uma hora nos cansamos, senhor Shinji. Todos tem seu limite, o da família dela foi longo. Como ultimo recurso queriam deixar Bianca em um asilo, a mãe impediu isso, houve uma grande gritaria, Yuki chorava e a Bianca ficava quieta como se estivesse em um transe, em um outro mundo, entende o que eu digo? A mãe até continuou a vir por mais tempo, vinha todos os finais de semana, passava um tempo com a filha e depois ia para o parque com a neta. Essas visitas durante os fins de semana mudaram para uma vez ao mês, depois uma vez a cada dois meses, até que parou de visitar, acredito que ela também já estivesse muito velha para fazer as longas visitas.”

“Entendo, então...”, não conseguia me focar em nada, ainda estava pensando nas coisas que ele havia me contado, tentando reconstruir aquelas lembranças através das quais me narrou. Ele esperou que eu continuasse, mas não havia mais nada para falar. Me levantei e preparei para sair.

“Não é culpa dela senhor Shinji. Não culpe Bianca.”, disse se levantando, indo abrir a porta para mim. “Ela devia amar muito o Kenji, pelas historias que ouvi, eram como almas gêmeas. Talvez eles se completassem, cada um com uma asa, e quando ele se foi, ela perdeu a sua outra asa e com isso o seu rumo neste mundo. Desculpe senhor Shinji. Apenas um devaneio de um velho, não de atenção.”

“Não se preocupe.”, passando pelo portão olhei para a rua, já era fim de tarde. Vi a casa de Bianca mais uma vez. “A única pessoa que eu culpo, sou eu mesmo por ter permitido que tal coisa acontecesse.”.

Antes de me despedir do Marcio no dia anterior perguntei onde Yuki estudava. Ele me deu o endereço e agora estava em frente a escola.

Estava esperando pelo sinal do término das aulas do dia, haviam muitos pais em volta e, assim que o portão abriu, muitas crianças saíram, dificultando a minha visão, foi então que me lembrei: não sabia como ela estaria agora com doze anos de idade. Isso me assustou, não pensei nisso e agora não sabia o que fazer, tinha que observar todas aquelas dezenas de crianças saindo e imaginar qual seria a Yuki. Me aproximei junto aos pais, e observei da forma mais atenta possível, a única certeza que tinha era de que ela sairia de lá andando e ninguém estaria esperando por ela.

“Tioshi?”, ouço a voz de uma menina por entre a multidão de crianças. “Tioshi?!”

Ela sai da multidão e vem correndo em minha direção, quando para na minha frente fica me olhando com os olhos bem abertos e um sorriso largo no rosto.

“Yuki?”

“Tioshi! É você! Eu sabia!”, pulou pra me abraçar, me curvei um pouco devido a nossa diferença de altura, ela estava completamente diferente de como a lembrava, seis anos realmente foi bastante tempo.

“Yuki! Como você cresceu menina!”, disse após solta-lá do abraço.

“Hihihi. O que você está fazendo aqui?”

“Fiquei sabendo que você estudava aqui, e como estava andando na região resolvi ver se te encontrava.”, respondi enquanto caminhávamos para fora da multidão de crianças e pais que se encontravam para voltar para casa. “Mas acho que foi o contrario, né? Como você sabia que era eu?”.

“Sabe que eu não sei?”, respondeu ao passar pelo ultimo grupo de mães. “Tioshi é Tioshi, eu olhei para você e a primeira coisa que me veio à cabeça foi você! Tioshi. Eu não me lembrava mais do seu rosto, mas no fundo eu senti que era você!”.

“Ainda não perdeu a mania de me chamar assim?”

“Desculpa.”, ficou um pouco triste, parecia que ela sentia ter me ofendido e estava arrependida, seus olhos baixaram para a rua e fez silêncio.

“Para que as desculpas? Não me importo mais que você me chame de Tioshi, pra falar a verdade até fiquei muito feliz por ter ouvido você me chamar assim de novo.”.

“Sério?!”, ficou toda feliz.

“Sim.”, ela começou a andar e eu acompanhei seu ritmo.

“Tioshi vai me acompanhar?”.

“É claro, faz tempo que não conversamos. Vamos aproveitar a caminhada para falar um pouco.”.

“Eu tenho que passar no mercado antes de ir para casa, Tioshi não se importa?”.

“Claro que não!”.

“Onde você esteve todo esse tempo, Tioshi?”, perguntou enquanto caminhávamos em direção ao mercado, estava sendo guiado por ela.

“Trabalhando no exterior.”

Estava feliz ao ver que ela estava com saúde e animada apesar da situação. Mas no fundo, sabia que estava triste e que guardava toda essa tristeza para si, para não preocupar os outros. Ela havia se tornado uma menina muito forte, Kenji, assim como eu, estaria muito orgulhoso dela se estivesse vivo. Kenji... Ainda não conseguia aceitar a situação, a morte dele, o estado de Bianca e a tristeza e bravura de Yuki. Nenhuma criança deveria passar por algo assim.

O mercado era no bairro onde a casa dela ficava, era um lugar pequeno, típico mercadinho de bairro residencial. Ela sabia exatamente onde procurar o que queria, provavelmente, pensei, por fazer compras regularmente lá.

“Desculpa, Tioshi.”, falou parando em frente de onde ficavam os legumes. “Eu não posso convidar você para almoçar em casa...”.

“Ora, não se preocupe com isso, eu vou almoçar em casa hoje.”.

Fizemos silêncio até ela terminar de pegar as coisas que precisava e passar pelo caixa do mercado, até que olhou para mim enquanto guardava as compras na sacola.

“Prometo para Tioshi que vou fazer um almoço muito gostoso qualquer dia. Eu sou boa cozinheira, sabe?”

Parei por um momento, com a alface em uma mão e sacola na outra. “Tenho certeza que sim.”, e quando a guardei na sacola continuei: “Hum! Eu vou aguardar ansioso por isso então.”.

“Ok! É uma promessa, então!”. Saímos com as sacolas do mercado.

Nos despedimos na frente da casa dela. Ela não me convidou para entrar, também não insisti para isso. De certa forma foi bom ter visitado Bianca antes, se não o tivesse feito, provavelmente iria pedir para entrar e vê-la, com isso as coisas poderiam se agravar, principalmente para Yuki que estava fazendo força para não me contar nada talvez para não me preocupar com ela.

“Amanhã eu vou buscar você de novo na escola, tudo bem?”.

“Não quero atrapalhar, Tioshi. Por favor, não precisa. Eu já estou acostumada.”, disse ao entrar pelo portão.

“Não vai me atrapalhar, eu estou de folga...”, cocei a cabeça meio sem jeito e dei uma risada. “Na realidade estou de férias e não tenho nada para fazer, é serio. Amanhã eu venho te pegar, me espera na entrada da escola, ok?”.

Yuki parou por um momento, pensou e pensou, mas não conseguiu esconder a alegria. Tentou fazer uma cara séria, mas não conseguiu. “Se Tioshi diz que não vai atrapalhar então tudo bem.”.

“Até amanhã então, Yuki.”.


--Fim do capitulo 2.