quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Duas Luas - Seis

A pilha de papel em minha mesa começava a adquirir um magnetismo que, assim como a gravidade, atraia minha cabeça para sua superfície lisa preenchida com tinta de impressão a laser.

Sono.

Sono, sono, sono, sono.

Sono e uma garota de cabelo azul chamada Akari Luna em minha casa.

– Problemas com sono? – a voz inicia em um eco distante, mas se aproxima rapidamente quando, com toda a força permitida a mim naquele instante, levanto minha cabeça e ergo minhas pesadas pálpebras. – Senhor Eduardo?

Eu te conheço? Não tenho forças para perguntar, somente para processar uma série de informações que percorrem caoticamente minha cabeça. Esse rapaz é...

Quando o processo é finalizado e o resultado retornado para minha consciência, percebo o quão ferrado estava. Era o filho do dono. O diretor, o mandante, o cara que ninguém nunca tinha visto e nem queria ver. Na minha mesa, de frente para meu corpo sonolento e desgraçado, resultado de uma noite de pouco sono.

Ótimo. Excelente.

Fantástico. Me desculpe pela minha incompetência que gerou a honra de sua descida imperial do último andar ao que eu fico. Movimentando os olhos vejo que todos em volta, dentro do ângulo de visão, me olham, ou melhor, olham para ELE, espantados.

– S-sim – reforço com um meneio de cabeça.

Tento me endireitar na cadeira.

– Me desculpe, senhor...

– Não precisa – respondeu o jovem rapaz abrindo um sorriso tranqüilo. Sua postura impecável e seu mais novo sorriso me trouxeram apenas uma palavra em mente: Artificial.

Mais artificial do que a planta de plástico que serve de cinzeiro no saguão do prédio. Mais artificial que o sorriso que eu devolvo pra ele parecendo um idiota completo.

– O senhor faz um excelente trabalho e fica até horários incríveis apenas para manter os relatórios em dia – disse.

HEH?! C-c-como ele pode saber de tantas coisas? O filho do dono fica me observando de perto?

Engoli seco.

Perguntei-me a quanto tempo ele me observa. Hoje mesmo ele pareceu brotar por debaixo dos pisos do escritório vindo freneticamente falar comigo. Minhas conversas com Yumei foram pelo celular, mas era suficiente para as câmeras me flagrarem conversando com...

Não. Não tinha como eles descobrirem por que eu estava lá. Mesmo assim...

Mesmo assim, para alguém da posição dele saber o que alguém da minha posição que supera – em poucos pontos – a da mulher da copa, faz dentro da empresa é um choque.

As expectativas de que meu cargo seria bom para passar despercebido foi-se pelo ralo. Imaginei o que mais ele saberia, das minhas pequenas escapadas para os arquivos mais antigos da empresa.

Outra camada seca passou pela minha garganta.

– O-obrigado, senhor.

– Disponha – respondeu inabalável mantendo seu sorriso propaganda. – Senhor Eduardo, se está cansado, pode tirar o dia de folga – disse estendendo um dos braços no sentido dos elevadores. – Amanhã você pode continuar com isso. E se há qualquer coisa em que eu possa ajudá-lo, por favor, não hesite. Minha sala está sempre aberta.

Virou-se e partiu.

Suspeito.

Muito suspeito.

Incrivelmente suspeito.

Tão suspeito que me leva a suspeitar da suspeição.

Antes de tudo isso... Onde foi que eu vi o rosto dele. Acredito que essa tenha sido a primeira vez que todos do prédio viram seu rosto. Nunca antes, que eu soubesse através da minha pequena investigação, ele havia descido anteriormente para falar com qualquer funcionário. Tudo era feito através de seu assessor.

Espera... Então por que eu?

Arght. Minhas suspeitas coçam mais que cair e rolar em cima de urtiga apenas de sunga.

Coçando minha cabeça e me levantando, aceitando a oferta de voltar para casa, recordo-me de onde tinha visto seu rosto.

Foi há mais de vinte anos atrás, quando a internet ainda dava os primeiros passos para o acesso público e a informação que nela circulava era extremamente limitada. A foto dele saiu em uma revista de ciências tão obscura que foi um milagre eu ter encontrado uma cópia dela.

Não era uma coluna muito grande, mesmo porque a revista falava de coisas mais absurdas para a época, como óvnis, clonagem, espers e afins; por esse motivo nunca chegou na terceira edição. Na coluna dele falava sobre prolongamento da vida, estudos de drogas que aumentavam a longevidade das pessoas e...

A foto.

A foto era ele.

Não mais novo.

Nem mais velho.

Ele. O filho do dono da empresa... exatamente igual ao seu pai, o homem da foto.

O que diabos estava acontecendo...?

domingo, 18 de outubro de 2009

Duas Luas - Cinco

Seres imortais que regem a noite, as trevas e a pureza. É assim que Akari se denominou. Não apenas elas, mas como todas as sacerdotisas que representam a lua.

Qualquer outra pessoa pensaria no absurdo daquelas palavras, mas não seria a primeira vez que via ou ouvia coisas impossíveis. Apesar de minha tolerância para coisas improváveis, uma coisa aprendi: quando se descobre um desses absurdos, prepare-se para problemas.

– E o que você faz aqui? – perguntei após a explicação dela.

– Tentando encontrar uma lua.

– ...?!

Akari riu.

– Não é que a lua tenha caído na terra – disse apontando para o céu cuja lua cheia aparecia cortada por nuvens negras da noite. – Mas existem as descendentes da lua. Na verdade são duas, gêmeas e imortais. Tento encontrar uma desaparecida.

– E você quer que eu acredite nisso?

– Hummm... – pensou colocando o indicador sob seu queixo. – Imagino que isso seja realmente estranho para um ser humano da terra – ficou em silêncio ponderando mais alguns segundos. – Não. Não precisa acreditar nisso.

O problema era que eu acreditava. Não precisamente em sua história, mas no contexto geral. Sua imortalidade explicaria seus ferimentos se curando rapidamente. Mas procurar uma lua...?

– O que quero – prosseguiu encarando-me nos olhos. – É que você me diga o que quer.

– Huh? – perguntei surpreso, erguendo uma sobrancelha.

– Sim – disse encostando-se a sacada. – Você salvou minha vida, duas vezes. Então eu devo algo a você em troca. Qualquer coisa.

– Erm... se você é imortal, não acho que tenha salvo sua vida.

– Ah – disse abrindo um sorriso. – Somos imortais de idade e temos uma tolerância para danos em nossos corpos, dependendo do grau do ferimento levamos dias para nos curar o que nos deixa vulneráveis durante um período. É nesse período em que nos recuperamos que podemos ser mortos.

Cocei o queixo, uma brisa fria passou por nós ondulando o longo cabelo azul de Akari.

– Então, você salvou minha vida – falou depois de ver minha cara pensativa. – Então estou lhe devendo, você pode...

Antes que terminasse levantei-me da cadeira da varanda e entrei no quarto.

– Você não me deve nada, apenas tome mais cuidado – disse deitando-me no sofá que havia no centro.

Esse era o quarto de visitas, na verdade haviam dois quartos no andar de cima da casa e um menor no andar térreo, eu preferia o quarto do térreo, não por ser menor, mas por estar mais próxima a entrada da casa. Por se situar na entrada, podia ouvir qualquer um que entrasse pela porta da frente. Os outros quartos serviam como escritório e biblioteca.

No que estávamos, que tinha a sacada, era a biblioteca que tinha um enorme sofá de descanso no centro.

De olhos fechado sinto alguém subir no sofá e parar sobre mim, os cabelos de Akari caem sobre meu rosto e ouço sua voz próxima a minha orelha.

– Talvez essa seja uma oportunidade única em sua vida – sussurrou de uma forma sensual e misteriosa que me fez estremecer.

Ao abrir minhas pálpebras nossos olhos se encontraram e ela se afastou com um sorriso.

– Pois bem – disse levantando-se. – Vou ficar aqui até que você tenha algo para me pedir.

Suspirei esfregando o topo do nariz com o indicador e polegar. Olhei para o relógio, já era sexta feira.

domingo, 11 de outubro de 2009

Duas Luas - Quatro

Sobre a fina barra de ferro que não devia ter mais de três dedos de largura, ela parou sobre os dois pés, completamente equilibrada. Andou de um lado a outro sobre o parapeito como se fosse a coisa mais natural de se fazer, parecendo um gato.

Virando-se a minha frente vê minha cara espantada e sem reação.

– Então... – disse como em um miado entediado. – Você me salvou.

Apenas assenti.

– Hum... – olhou em meus olhos concentrada. – Acredito que eu tenha que agradecer a você, senão estaria em uma situação muito ruim.

Assenti novamente de boca escancarada.

Saltou da barra e usou ambos os braços para se segurar a ela antes que caísse. Seus pés ficaram suspensos por um minuto e logo depois, usando seus braços como alavanca, pôs a se sentar sobre o parapeito, cruzando as pernas em seguida.

Quanto de força tinha, era impossível saber, mas para fazer o que fez de maneira tão natural devia ser alguém com força sobre humana, ainda mais com aqueles braços finos.

– Então... – mais uma vez sua voz saiu como um miado. – O que você faz?

– Desculpe? – perguntei ainda surpreso com sua performance de acrobata.

– É. O que você faz, com que trabalha. Essas coisas – disse impaciente.

– Humm... – murmurei pensativo. – Organizo relatórios em uma empresa... acho que você pode dizer que eu sou uma pessoa bastante ordinária nesse aspecto.

Ela ergueu uma sobrancelha fitando-me com seus olhos azuis que reluziam a luz na lua.

– O que faz fora do trabalho?

– Humm... – pensei de novo. – Nada de mais, leio livros, fico aqui fora tomando um café, fumando um cigarro e apreciando o céu.

– Que chato... – disse entediada.

Huh? Chato? Me desculpe se eu não sou uma pessoa que aparece cheio de cortes pelo corpo e me curo rapidamente. Ou caio desmaiado de madrugada no meio de uma rua deserta. Ah, sim. Prefiro minha vida assim como ela é do que a que está se passando por sua cabeça.

Um momento, espera um pouco. Não devia ser eu fazendo as perguntas aqui?!

– Você não pode ser tão monótono assim! Tão comum! – exclamou ela inclinando-se para mim, tanto que parecia que iria cair da barra de ferro.

– Erm... Acredito que não seja uma questão de poder ou não...

– Claro que é!

– E por que da sua exaltação?

Arght, de novo era ela quem estava no controle da conversa. Me perguntei quando foi que deixei esse rumo ser tomado.

– Ora! – endireitou-se e cruzou os braços com ar superior. – Por que eu fui salva por você. E se você é uma pessoa comum e monótona, isso faz de mim algo ainda pior!

Mas que?! Como essa garota...?! Respirei fundo passando a mão pela cabeça.

– Estou brincando – disse e ao olhar para ela vi o canto de seus lábios se erguer em um sorriso e abrir um de seus olhos em minha direção. – As vezes é no comum que se encontra a beleza de toda a vida.

– Huh?

– Fiquei curiosa em ver seu rosto irritado. Alguém que passa pelo que você passou comigo não teria uma expressão tão tranqüila quanto você teve.

– De qualquer forma – prosseguiu, – você parece ser uma pessoa bastante interessante... humm...

– Eduardo – respondi sem compreender a mudança radical. – Pode me chamar de Du.

– Du – repetiu sentindo o gosto do nome em seus lábios finos e rosados. – Um nome comum para uma pessoa comum – murmurou. Saltou do parapeito e caiu em minha frente estendendo sua mão aberta para mim. – Akari Luna. Ou como alguns humanos me chamam: Tsuki Akari. A luz da lua.

– Luz... da lua? – repito sem compreender.

domingo, 27 de setembro de 2009

Duas Luas - Três

Suspirei resignado com ela em meus braços. Seu sangue escorria por cortes profundos em seus braços e por baixo dos rasgos de sua roupa. Era como se enormes garras a tivessem cortado.

– Deixa eu adivinhar – disse olhando-a nos olhos. – Sem médicos?

Com um leve meneio da cabeça ela assentiu, sorriu fracamente e suas pálpebras desceram a deixando inconsciente.

Não seria a primeira vez que cuidava de ferimentos de alguém, particularmente de uma mulher. Porém ao tirar a roupa dela um frio me percorreu a espinha. Senti-me como se estivesse fazendo algo pecaminoso, maculando algo extremamente sagrado.

Balancei a cabeça. Era necessário. Já estava com agulha e linha nas mãos enquanto observava o sangue escorrendo pelos cortes do corpo dela, manchando o lençol da minha cama.

Espera. Estariam os cortes menos profundos que minutos antes? Perguntei-me ao olhar alguns deles que já pareciam arranhões.

Mas o que...?! Aproximei meu rosto e examinei um dos ferimentos mais profundos na altura de seu estômago. Somente de perto percebi que estava se fechando naturalmente.

– Tudo bem – disse a mim mesmo. – Já vi coisas mais estranhas que essa...

Guardei a agulha e a linha, depois limpei os cortes e coloquei curativos por cima deles.

Apesar de não ser de meu feitio forçar outras pessoas responderem minhas dúvidas, essa garota precisava esclarecer as coisas. Principalmente por ter manchado meu lençol e o chão da minha sala de sangue.


Quando preciso de um tempo para pensar fico na sacada do segundo andar de casa, sentado em uma das cadeiras fumando um cigarro. Acompanhado de uma xícara de café, observava as casas vizinhas e o céu escuro de inicio de madrugada. A brisa fria e solitária cruzava as ruas desertas.

Senti uma mão macia pousando em meu ombro, ao virar-me vejo a garota que estava a pouco tempo desmaiada em minha cama, ferida por cortes profundos.

O que me espantou mais do que sua presença a meu lado foi sua roupa. Uma de minhas camisas cobria o seu corpo.

– Ei... isso é meu – foi tudo que consegui dizer ao vê-la assim, repentinamente.

– Você queria que eu viesse aqui fora nua? – disse irônica. – Ou você não se contentou o suficiente de ver o meu corpo quando tirou minhas roupas?

Tremi. Só não sei se foi por causa do calafrio na espinha ou por causa da mão que se fechou abruptamente em meu ombro, como uma garra muito forte, mas macia e morna. Talvez tenha sido por causa das duas coisas.

– Eu não...

Entretanto, antes que pudesse falar qualquer coisa, a garota correu em direção ao parapeito da sacada e pulou sobre ela.

domingo, 20 de setembro de 2009

Duas Luas - Dois

Tem comida na geladeira. Fique a vontade para comer e ficar o tempo que quiser.

Quando sair coloque a chave da porta na caixa de correio na entrada.


A garota ainda estava dormindo quando despertei, na poltrona da minha sala já que ela estava na única cama que tinha, para ir ao trabalho.

Não me incomodava ter uma pessoa completamente desconhecida em minha casa. A única coisa de valor que tinha seria um laptop com mais de dez anos de uso que servia apenas para pesquisa e e-mails. Também não acredito que houvesse pessoas que roubariam meus livros, então minhas posses estavam resumidas a coisas relativamente sem valores monetários.

Por volta da tarde eu recebi uma ligação no celular.

– Yo, Du – cumprimentou-me a mulher de voz sedosa e animada.

– Huh?! – fiquei surpreso. – Eu já disse pra não me ligar em horário comercial!

– Oh? – disse irônica. – Em uma empresa tão grande como essa em que você está, dificilmente vão se importar com alguém que atende uma ou duas ligações pessoais.

Olhei em volta. Realmente todos os parecia me notar.

– E então – prosseguiu ela. – O que encontrou?

– Não muita coisa – respondi desapontado comigo mesmo. – Nenhum funcionário com quem falei nunca sequer viu o dono da empresa. Revistas e jornais também nunca conseguiram uma foto dele. Nem mesmo o chefe do meu setor conhece o dono da empresa. Ele simplesmente parece não existir.

– Hum... Mas ele existe, disso podemos ter certeza – ouvi um suspiro do outro lado. – De qualquer forma tome cuidado, você sabe o que aconteceu com as pessoas que tentaram encontrar ele.

Ela não precisava me lembrar. Todos que tiveram a curiosidade e audácia de tentar descobrir o rosto por trás de uma das maiores empresas de tecnologia do mundo, acabaram morrendo. Obviamente morreram por causas naturais, algumas se mataram jogando-se em frente a trens ou caindo de prédios. De uma forma ou de outra, ninguém podia ligar a empresa com essas mortes.

Ninguém exceto Yumei, minha verdadeira chefe.

– Não se preocupe – disse, prestes a desligar o celular.

– Ah! – lembrou-se ela. – Não se esqueça de que são os gatos que escolhem os seus mestres – disse com voz irônica. – Claro que não se pode levar em consideração o gato de Nabeshima, hehe.

– Huh? Qual o problema com gatos agora? – perguntei erguendo uma sobrancelha, mesmo sabendo que ninguém veria.

– Nada – respondeu sarcástica, dando uma risadinha. – Apenas me lembrei da lenda dos gatos serem guardiães dos mortos.


Diferente do dia anterior, voltei para casa no horário habitual. Chequei minha caixa de correspondências na entrada do prédio. Vazia. Isso significava que a garota de cabelos azuis não tinha ido embora. Sorri ironicamente. Pelo menos podia perguntar a ela o que aconteceu antes de encontrá-la ainda no asfalto.

Subi as escadas e abri a porta, porém ninguém estava lá. Procurei no quarto, cozinha e banheiro. Sentei-me no sofá da sala cocando a cabeça. “Talvez ela tenha esquecido de devolver a chave,” pensei.

Tomei banho e jantei. Passado das onze horas, enquanto lia um livro no sofá da sala, ouvi a porta se abrindo.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Duas Luas - Um

O cheiro pútrido do ácido estomacal se misturava ao cheiro de ferro do sangue. Pedaços de corpos estavam espalhados pelo chão e empalados em enormes estacas fincadas no asfalto. Os escombros do que antes foram enormes apartamentos comerciais e residenciais, e aqueles esqueletos que sobreviveram a destruição do quer que tenha acontecido aqui, cercam a carne e os ossos até além do horizonte do céu tingido de escarlate e nuvens negras.

Colocando as mãos sobre o rosto tento fugir da amarga realidade. O ar que entra em meus pulmões queima como brasa. Como vim parar aqui, não faço idéia, mas sei que é o mundo em que um dia vivi.


Acordei em meu escritório com a luminária da mesa acesa, a luz fluorescente estalando de constante uso, meu redor está escuro e vazio. Olhei para meu relógio, três da madrugada de quarta feira. Não era a primeira vez que tinha dormido em cima da mesa por excesso de trabalho.

Peguei minhas coisas e sai do escritório deserto. Na portaria me despedi do guarda noturno.

– O senhor não quer que eu chame um taxi? – perguntou ele por trás do balcão.

– Não, obrigado – respondi. – Vou a pé mesmo – acenei para ele passando pelo hall de entrada.

Do trabalho até minha casa era cerca de vinte minutos, o problema eram as ruas estreitas e escondidas das demais. Por ser madrugada não me incomodei muito, a maioria dos assaltantes e mendigos deveriam estar dormidos ou bebendo nos bares afastados da região.

Isso não mudava o fato de tudo estar deserto e um tanto intimidador. As portas de ferro das lojas fechadas, as casas e apartamentos com suas luzes apagadas, os barulhos dos motores dos carros ecoavam distantes, como se estivessem em um sonho.

Continuei caminhando até que algo inesperado entrou em meu campo de visão.

Banhada como um ser angelical pela luz do poste que projetava um círculo amarelado no chão, uma mulher estava deitada de costas para baixo. Seus longos cabelos azuis –que lembrava o azul de jeans claro – e lisos estavam espalhados, mas não ousavam cruzar o limiar da escuridão. Sua pele alva reluzia uma incandescência casta e meiga. Usava uma longa saia de um azul muito mais escuro que seus cabelos, e uma camisa branca abotoada até a altura de seu pescoço.

Me aproximei o mais rápido que pude. Felizmente ela estava respirando, porém parecia inconsciente.

– Ei – disse pegando-a nos braços. – Garota? Ei! – balancei-a. Obtive apenas um fraco movimento de suas pálpebras fechadas. – Espere, vou chamar uma ambulância.

No instante em que ia pegar meu celular, a garota agarra com firmeza minha mão com o aparelho. Nossos olhares se cruzam, seus olhos são azuis como seus cabelos.

– Não! Eu vou ficar bem – disse com uma voz fraca. – Só preciso descansar...

Logo em seguida voltou a fechar os olhos caindo em um sono profundo. Cocei a cabeça e olhei em volta. Ninguém.

Sem outra alternativa a carreguei até minha casa.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Cidade sem estrelas

Na varanda de um café, sentada em uma mesa próxima ao parapeito, uma senhora de meia idade observava o movimento constante da rua, seu olhar distante.

Era segunda feira a tarde, o dia de folga dela. As mãos calejadas que envolviam a xícara mostravam anos de trabalho duro e a pequena aliança em seu dedo, anos de devoção. Mergulhada em pensamentos, costumava ficar ali imaginando como estaria seu filho, que trabalhava fora do país.

Dentro do café, na parte dos fundos onde os funcionários se trocavam, duas jovens trocavam confidencias, uma chorava.

– Eu sabia que ele estava com outra! – disse em meio a soluços.

– Ele não presta.

– O que foi que fiz para merecer isso?

– Ele não presta – a amiga repete a abraçando, deixando que derrame suas lágrimas sobre seu uniforme.

Andando pela calçada, um senhor de idade tenta atravessar a rua. Três passos, extremamente lentos, são necessários: bengala, perna direita e por fim a perna esquerda. Sua coluna é envergada por anos de trabalho levantando peso e seu olhar cansado.

Um carro corre em direção a ele, sem diminuir a velocidade, o motorista, ainda jovem, apenas desvia do velho tão próximo que se não fosse pela mão amiga teria sido atropelado.

Os transeuntes xingam o motorista.

Pegando o senhor pelos braços, um homem de terno e gravata o puxa para perto de si, salvando o idoso do jovem motorista imprudente. Mantém a postura impecável de um alto executivo.

– Eu estou bem – anuncia o velho a todos que o olham.

– Eu estou bem, obrigado – agradece ao homem com um sorriso.

O executivo responde apenas com um falso sorriso e solta o braço do senhor, em seguida arruma sua gravata e continua seguindo seu caminho a passos apressados.

Com uma mão no volante e a outra no celular o jovem, com lágrimas nos olhos, não consegue pensar. Esta fora de si, felicidade e medo o dominam a adrenalina corre incessante em seu sangue. Do outro lado da linha sua mãe grita:

– Vai nascer! Vai nascer! Seu filho vai nascer!

Tento apenas vinte e um anos, a chegada de seu filho trazia um novo rumo a sua vida. Nada seria como antes.

Sentado ao chão, de mão estendida, um mendigo olhava para cima para os transeuntes que passavam o ignorando. Ele esboçava o sorriso mais amigável que conseguia.

– Assim é a vida! A vida é assim! – exclamava para quem passava. – Peço humildemente por perdão. Perdoem por eu não me apresentar com a mesma dignidade que vós!

– Vai trabalhar, vagabundo! – gritava algum mais estressado ao ouvir a cena.

Gritos e risadas de crianças são ouvidos, misturando-se com o alaranjado de fim de tarde. A escola nas proximidades abre suas portas para a saída dos pequenos e pequenas.

Fileiras de caros surgem de lugares desconhecidos. Pais e mães que buscam seus filhos e filhas. Também uma sorte de pessoas que saem de seus trabalhos.

Parada em um ponto de ônibus, uma mulher massageia seu próprio ombro com a mão, exausta após a faxina do escritório em que trabalha.

Suspirou ao ver seu ônibus tão cheio que ma podia fechar as portas. Encolheu-se nas escadas do ônibus e partiu apertada, obrigada a, pelo menos durante as quase duas horas até sua casa, esquecer sua dor.

Uma mãe carregando sacolas de supermercado em ambas as mãos, sorri quando vê a filha correndo em sua direção, recém saída da escolinha.

– Como foi o dia? – pergunta assim que a filha lhe da um abraço.

– Foi normal, tenho muita lição de casa agora – disse um pouco triste.

– Então tem que se esforçar – disse a mãe. – Não quer fazer a lição enquanto faço a janta? – perguntou erguendo as sacolas.

– Hun! – assentiu a filha sorrindo.

Mãe e filha caminharam lado a lado até a casa delas.

Os gritinhos e risadas continuaram por mais algum tempo. Assim como as buzinas e congestionamento.

A tarde começava a ceder espaço para a noite.

Assim chegava ao fim mais uma segunda-feira na cidade onde não se podia ver as estrelas.

domingo, 28 de junho de 2009

Sem inspiração.

Faz quantos dias? Ou será que foram semanas? Talvez até meses?

Não sei. O que sei é que a brancura do papel começa a me enjoar. Vertiginoso, opressor, aterrorizador. O branco envolve o fundo da minha córnea projetado de cabeça para baixo, ou será de cabeça para cima? Vejo navios, colossos, guerreiros, detetives e casais apaixonados... mas passam muito rápido, não consigo captá-los.

A caneta.

A tinta contida em um recipiente de acrílico. Aprisionada. Trancafiada. Esquecida. Sua liberdade tão breve que dura nano-segundos até sua nova prisão... o papel. Tem sorte quando é aprisionada em palavras ricas e belas... O que não é o meu caso.

Minha cabeça dói... será o branco do papel? Tão branco que as linhas horizontais se misturam no oceano... branco.

Branco, branco, branco.

“AAAAAAARGHT!” Jogo a caneta sobre a mesa e dou voltas pela cadeira de madeira, velha e empoeirada.

Sou um merda.

Minha vida é uma merda.

Constato tudo ouvindo as musicas dos vizinhos se divertindo em plena noite de sábado.

Sou um merda.

Fétido, inútil, desprezível... Restos negados pelo próprio corpo...

Tentei me matar, mas nem isso consegui.

A colher de madeira não quis cortar meu pulso. O fio dental se rompeu quando o testei antes de me enforcar. O copo d'agua não foi o suficiente para me afogar. A arma que usei estava sem munição... e era de bolinhas...

Não há inspiração da minha vida. Não há inspiração da minha morte.

Sento-me na cadeira.

Folha branca. Caneta cheia. Tinta aprisionada esperando para que eu a liberte em palavras belas e românticas. Palavras certas e sábias.

“Dane-se,” escrevo na folha. “Eu sou um merda.” Continuo...

Ah... a beleza...

Acendo um cigarro e olho pela janela.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Last Goodbye

Eu pretendo fazer desse aqui meu último post nesse blog. A razão? Não importa. Escrever para mim é um sacrifício que prefiro – como bom auto-proclamado mártir e filho único – não compartilhar com ninguém , só pra ver se algum fulano(a) devidamente embriagado gives a fucking damn about it.
Afinal, ninguém nunca disse que não é pelo Ibope que o mártir faz o que faz. Autoflagelo em praça pública pra entrar nos anais da história. Considerando que, no meu caso pelo menos, a literatura vai ficar muito mais no anal do que história, se é que vocês me entendem. Não? Tudo bem...
O bacana é que consigo ver uma evolução nas coisas que escrevi há dois anos comparadas às coisas que eu escrevo agora (putaqueopariu: ainda bem!) e, essa ilusão de ter subido alguns degraus ajuda a ligar o som mais algumas vezes e esmurrar essas teclas sem medo, sonhando ser Dostoievski, tentando imitar o Bukowski, devorando o Mirisola (no bom sentido, puramente sexual. Se algum dia ele ler esse lixo aqui, vai entender) e puta merda, Deus me impeça de falar que pago um pau pras poesias do Piva. Mas ninguém conhece ele, nem o Dostoievski (“Ah! O cara que escreveu o livro do tal assassinato? Que tem filme e tudo né?”), nem o velho Buk, então tá tranqüilo. O Mirisola é famoso. Todo mundo o conhece pela alcunha de “Maldito”, não sei de onde tiraram isso (Eu vou na Saraiva e pergunto: “que livro do Mirisola vocês têm ae?” A bichinha com piercing no umbigo diz: “Ai, aquele escritor que chamam de maldito né? Acho que tem um livro dele, sim”. Nem sei porque eu pergunto isso toda vez; talvez seja pra ver o ponto de interrogação na cara da minha mulher). A verdade é que tem gente demais tomando muito Nescau com esperma por aí. Au, au. (quem manja, manja. Quem não manja se fodeu e perdeu a referência muito bem feita).
Aproveitando, Animais em Extinção é um dos meus livros preferidos de 2009.
Pronto!
O importante foi dito.
De volta à lenga-lenga.

Não pretendo continuar a escrever aqui. Agora vou me tornar um advogado de sucesso e quem sabe até virar juiz (segredo: prefiro adestrar chinchilas albinas e viajar o mundo com o Circo Vostok do que voltar a pegar num livro de direito, mas azar dos fatos).

Concentre-se nos bugalhos, concentre-se nos bugalhos: essa mudança no meu humor em relação à “arte” de escrever decorreu de um conjunto de fatores, desde topar com um conto da Márcia Denser e ter, com isso, descoberto a literatura pela segunda vez, até estudar estruturas narrativas e ler poesia. Coisas muito bacanas que apenas me acrescentaram enquanto pessoa (???) e refletiram no meu texto.
Conheci também alguns escritores e vi que eles são humanos e gente fina. Eles até topam ler algumas coisas que eu escrevo; imaginar que os caras vão ler algo que eu escrevi me tira até o sono, mas daí eu pego um Balzac (qualquer um dele) pra ler e em dois minutos estou capotado, sem previsão de retorno e sem garantias de que não haverá seqüelas.
É claro que nem tudo são flores. Tomei muita porrada na cara de gente que se dizia escritor. Muito e-mail ignorado e cartas devolvidas por mudança de endereço – nesse a culpa é minha, eu sei...-; cheguei até a fazer um curso de escrita, é mole? Não vou falar muito disso aqui porque me serviu para alguma coisa que, quando eu lembrar o que foi eu peço pro Felipe postar aqui. Cursos de escrita criativa, ministrado por escritores são uma roubada. Deixo desde já um aviso: ROUBADA! Do tipo passa a carteira e a auto-estima. Watch out my brothers and sisters.

Enfim, quero agradecer aos 1465 visitantes que nos presentearam com sua presença e leitura (fato: dessas 1465 visitas – 730 são minhas, 650 do Felipe, 50 de pessoas que entraram no site sem querer e logo clicaram no “voltar) e 35 foram de pessoas perdidas nesse mundo em busca de ajuda (o Disk Oração dava sinal de ocupado direto). Espero que o Felipe continue postando as coisas que ele escreve aqui. Eu vou continuar lendo o blog, escrevendo (não aqui, obviamente), lendo, lendo, lendo, sonhando em ser Dostoievski, tentando imitar Bukowski e etc...

Vou deixar como despedida um poema do velho Buk, em homenagem à minha mulher que, ao contrário de vocês, vai continuar me agüentando e fazendo um puta esforço para ler as coisas que eu escrevo até o fim.

Ah!
PUTA QUE O PARIU! NÃO POSSO ESQUECER!

BANDO DE FIODAPUTA! TEM APRESENTAÇÃO DA VELHA NO SATYROS I – PÇA ROOSEVELT, 214, ALBERTO GUZIK E CHICO RIBAS!
ESTARÁ EM CARTAZ ATÉ 28 DE MAIO! NÃO PERCAM! O TEXTO É DO MALDIT... DIGO MIRISOLA!

MONÓLOGO DA VELHA APRESENTADORATexto: Marcelo MirisolaDireção: Josemir KowalickElenco: Alberto GuzikTrilha sonora: Ivam CabralIluminação: Rodolfo García VázquezAssistência de direção: Chico Ribas Quando: Quartas e quintas, 23hOnde: Espaço dos Satyros Um, pça Roosevelt, 214Quanto: R$ 20,00; R$ 10,00 (Estudantes, Classe Artística e Terceira Idade); R$ 5,00 (Oficineiros dos Satyros e moradores da Praça Roosevelt)Lotação: 70 pessoasDuração: 40 minClassificação: 12 anosGênero: ComédiaEstréia: 11 de fevereiro a 28 de maio

Um grande abraço pra vocês, muito obrigado por tudo. Talvez, eu espero, no ano que vem meu livro esteja nas livrarias mais próximas de vocês. As aventuras do incrédulo Bostoievski.

Cuida da bagaça Massa.

André.

Confissão (Confessions)
Charles Bukowski (Tradução André F.)

Esperando pela morte como um gato
Que vai pular na cama
Eu sinto muita pena da minha mulher
Ela vai ver esse corpo duro e branco
Vai mexer nele uma vez
Talvez outra vez mais

Hank!
Hank não vai responder

Não é a minha morte que me preocupa,
É minha mulher
Deixada com essa pilha de nada

Eu quero que ela saiba que
Em todas as noites dormindo ao seu lado,
Até as discussões mais inúteis
Foram coisas eternamente esplendidas
E as palavras duras que eu sempre temi dizer
Podem agora ser ditas:
Eu te amo.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Despertar

Meu despertar foi tão ruim quanto ressaca. Estava sem senso de direção. Não que isso importasse já que nem sabia onde estava. Minha visão turva não ajudou, nem o fato de não conseuir mover meu corpo.

Recapitulei as últimas coisas das quais me lembro, precisei de mais esforço que o necessário. As lembranças vêm em flashes. Uma discussão com minha esposa, alguns drinks com os amigos para afundar as mágoas. Risadas, piadas e lembranças da época de escola. Luzes.

A cortina de veludo preto pousa sobre meu rosto impedindo minha visão. Tudo está escuro e tranqüilo, apesar dos murmúrios incessantes em minha volta. Sinto gotas de água?

Esforço mais minha memória, mas a exaustão não me permite. Ainda consigo ouvir murmúrios, agora de outras pessoas. Esforço-me mais um pouco e distingo as vozes da minha esposa e amigos. Alguns choram, outros conversam. Acho que devo ter sofrido um acidente.

Ouço uma música no fundo após alguns instantes de silêncio.

Descubro então que é meu velório.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Escrever, escrever e escrever.

Escreva. Se você tem vontade, escreva; mesmo não sabendo como começar, como escrever certo ou errado, torto ou reto, apenas escreva. Escrever não é um ato certo ou errado, fácil ou difícil, sério ou leviano, escrever é apenas escrever. A vontade de escrever é sempre maior, a paixão pela escrita é inevitável. As histórias, as imagens, a beleza, amizades e inimigos tudo que nos é contato pelas letras: escreva.

Aristóteles dizia que a paixão não existe sem a razão, e vice-versa. Porém o descontrole, a falta de julgamento, a loucura por um desejo, por uma obsessão, faz com que a razão seja reprimida, afundada no fundo, no canto do canteiro, deixe a razão lá e quando sobrar a paixão: escreva.

Não importa se achem que você não tem futuro, que você é um merda, que isso o que faz não passa de ilusão de criançinha: escreva, só quem sabe escrever é quem escreve, só quem sente paixão pela escrita é quem escreve, certo e errado, torto e reto. Os escritores já nascem loucos, já nascem com distúrbios, já nascem diferentes das “pessoinhas” que não sabem o que é escrever. Então, escreva, não lute, não force, escreva.

Se sua razão diz para não escrever, lhe falta paixão, lhe falta amor, lhe falta coragem, lhe falta dar espaço para que a paixão se misture com sua razão, que sua paixão enlouqueça a sua razão.

Rouanet dispõe dois tipos de razão, a sábia e a louca. A sábia é a moderação da paixão com a razão, de forma que o julgamento seja imparcial, já a louca que seria a paixão reprimida, dominada pela razão, porém tal razão é nada mais que a influencia da perturbação da paixão reprimida, aquilo que uma razão louca se diz ser a pura razão, é na verdade uma loucura gerada pela paixão.

Então, deixe que os outros te reprimam, deixem que digam o quanto você é inútil, fraco, imbecil e idiota, acredite neles, reprima sua paixão, se torne um louco, mais louco do que você – como escritor – já o é. Reprima a paixão e se deixe ser controlado por uma melancolia. Renuncie a escrita, sinta essa melancolia. Seja melancólico para ser o que os outros querem que você seja.

Mas no fim, lhe garanto, você não vai parar de escrever, a paixão não é vencida, mesmo na razão louca a paixão lhe influencia, lhe ferve, razão louca ou sábia: escreva, a paixão pela escrita transcende.

Idéias não nascem da razão, criações não nascem da razão, arte não nasce da razão, tudo é paixão, deixe que elas surjam, a razão é secundária, a razão é o que leva a concretizar as idéias. Não deixe que a razão controle suas idéias, pois elas não podem ser controladas, então não controle a escrita. Só os escritores conseguem escrever, só os escritores estão preparados para receber as palavras que ninguém mais pode.

Apenas escreva.

As pessoas não compreendem o escritor, o menosprezam e até o tratam com repugnância, mas por quê? Porque escrever é para poucos, escreva.

Escritor não é sábio: é atento. Escritor não é inteligente: é letrado. Escritor não é excêntrico, é louco. Escritor não é idiota, é mártir.

Então, escreva. Não deixe de escrever. Não deixe que os outros ao seu redor te influenciem, não deixe que a SUA razão te influencie. O escritor escreve, não por felicidade, não por tristeza; não por facilidade, não por dificuldade. O escritor escreve porque escreve, a paixão não tem razão, a criação não pode ser controlada, se o é, deixa de existir. Escrever é sofrer, assim como a paixão. Escrever é ser passivo com o externo, assim como o é a paixão. Então, por que escrever? Simples, porque paixão não se controla, não se domina, não se reprimi, paixão se sente, paixão existe, paixão não é opcional de fábrica, está entalhada no espírito do escritor. Paixão está aqui e ali, nasce com o escritor, morre com o escritor.

Por fim... Escreva.


Referência: Os sentidos da paixão. De Sérgio Cardoso. Ed. Cia das letras.

terça-feira, 5 de maio de 2009

O Gato Perdido (PARTE Final)

Antes de mais nada, finalmente consegui postar a última parte dessa "saga," para alivio de alguns xD .
Enfim, desculpem àqueles que leram a light novel pacientemente, minha demora foi devido a uma série de imprevistos, incluindo meu PC queimando, e alguns problemas com prazos. Mas conseguimos chegar ao final. Confessor que aprendi bastante... principalmente que não sirvo para isso \o/ HAHAHAHAHAHAHA
Bom... a história:


– Bom dia, senhor Masahiro, senhorita Ling. E você deve ser a senhorita Nana. Prazer em conhecê-los – cumprimentou a diretora do colégio, olhando e sorrindo para cada um de nós enquanto pronunciava nossos nomes. – Desculpem a demora, essa semana e a próxima a maioria dos funcionários está de férias devido ao fim de ano.

A sala da diretora era pomposa, uma mesa de mogno entalhada acompanhado de uma poltrona e duas cadeiras que eram incrivelmente confortáveis. Atrás da poltrona uma janela coberta por uma persiana e do lado oposto a porta de entrada. A parede direita tinha vários armários de livros e arquivos e na oposta o mesmo, com exceção de um sofá próximo a mesa, Nana estava sentada nela, enquanto eu e Ling ocupávamos as cadeiras.

– Não há problemas – assegurou-se Ling, assim que a diretora se sentou na poltrona do lado oposto a nosso na mesa. – Nós é que agradecemos por você ter aberto esse horário em sua agenda.

– Sim, sim – disse sorrindo. – Então Nana, sim? A ficha dela é excepcional, com certeza gostaríamos de ter alguém como ela aqui.

– Como Nathalie – disse eu. Sua expressão logo se tornou exasperada e seu olhar inquieto percorreu a sala. Apontei a arma para ela e sorri, pude ver que nesse instante se agarrou aos apoios de braços de sua poltrona, o suor despontando de sua testa. – Sabemos o que aconteceu.

– O que? – perguntou fingindo um sorriso inocente. – Do que vocês estão falando?

Suspirei sorrindo.

– Nunca imaginei que chegariam a esse ponto – disse engatilhando a arma, vi que ela engoliu seco. – Felizmente é fim de ano e quase ninguém está no colégio, não é? Seria muito fácil matar você, não acha?

– A policia estaria aqui no mesmo instante – falou tentando soar como uma ameaça. Permaneci indiferente. – Mesmo que vocês fugissem, eu sei o rosto de vocês e seus nomes.

– Sim, sabe – ri guardando a arma. – Porém...

Relatei o que Anderson havia contado para Ling, todos os detalhes que eu me lembrava. Calmamente ela ouviu, algumas vezes sorrindo e outras com um olhar sarcástico voltado para nós. O dia estava claro, com apenas algumas nuvens no ar, nem parecia que os eventos de quatro dias atrás foram reais, mas aqui estava eu falando com a diretora decadente de um colégio onde a imagem era tudo que tinham a manter, ao lado de Ling e Nana.

– Heh – riu ironicamente a diretora. – Muito interessante a sua fantasia, mas você não tem evidência contra mim ou qualquer um que você mencionou estar envolvido nessa sua ficção. Infelizmente é com pesar que lembro você de que o senhor Anderson e seu filho estão mortos, logo a única pessoa que poderia comprovar a sua pequena fantasia conspiratória, está morta.

Cruzei os braços e suspirei por trás de um sorriso. Ling tomou o rumo da conversa.

– Felizmente boatos são boatos por não precisarem de evidências – disse acendendo um cigarro. Claramente não se podia fumar lá dentro, mas o olhar e a voz intimidadora de Ling fizeram com que a diretora pensasse melhor e baixasse a cabeça, submissa. – Mas boatos desse tipo costumam vagar rapidamente pelos meios de comunicação e logo a imprensa de todos os lugares vão começar a fuçar, fazendo da vida de vocês um inferno.

Tragou e assoprou tranquilamente cruzando as pernas.

– Não importa se acharem algo ou não. O que importa é que o nome de todos vocês e deste colégio vão aparecer entre boatos de estupro, assassinato, suborno e muitas outras coisas desagradáveis que, infelizmente é com pesar que lembro você de que manchará o nome de todos.

Um longo silêncio caiu sobre nós, várias vezes a diretora tentou pronunciar uma palavra, mas toda vez que ia falar foi impedida por ela mesma. O suor brotava claramente de sua testa, sua mão segurava firmemente os apoios, coluna ereta que mal tocava no encosto, tamanha era sua tensão.

– V-v-você não teria como...

Ling sorriu antes que respondesse a aquilo.

– Procure na internet, veja os jornais. Felizmente as pessoas gostam de fofocas e conspirações.

A diretora se calou, lágrimas começavam a brotar de seus olhos, estava claramente desesperada.

– Você pode saber nossas caras e nomes – comecei assim que Ling apagou seu cigarro. – Mas nós sabemos o rosto de cada um de vocês, onde vocês moram e trabalham, assim como a rotina e quem são seus amigos e contatos.

Levantei da cadeira, Ling e Nana fizeram o mesmo e se dirigiram a porta. Antes que nos retirássemos perguntei olhando pelo canto do olho para a diretora que ainda estava estática:

– Só uma pergunta: qual era a matéria que Nathalie tinha publicado que chamou sua atenção?

A diretora balbuciou várias vezes tentando tirar as palavras de sua garganta fechada até que, com muitas tentativas, conseguiu pronunciar baixinho e asfixiado:

– Sobre a condição da educação do Brasil, e a violência e medo que começam a entrar nas escolas.

A isso eu tive que rir pela ironia que a vida havia trazido para todas essas pessoas e para nós. Suspirei e antes de fechar a porta da sala dela, sem me virar para ela, avisei:

– Estaremos de olho, não se esqueça.


Epílogo, parte 1: Um velho conhecido.


Ling nos deixou na entrada do nosso apartamento. Subimos os sete andares de elevador e seguimos o extenso corredor até a nossa porta. Nana parou séria, fitando a direção da porta, seus olhos novamente sem o brilho da visão.

– Alguém está ai.

Sem falar nada saquei a arma e virei a maçaneta. Estava aberta.

Entrei seguido por Nana e na sala vi um homem vestido de terno, camisa, calça e sapatos, o conjunto era tão caro que valeria o preço do apartamento. Cabelos escuros e espetados, um rosto quadrado e firme, olhos cerrados, estatura robusta e forte; seria o modelo ideal de um soldado linha dura. Era Malcom.

– Ora, ora, ora – disse assim que nos viu no limiar da entrada para a sala. – Se não é o sumido Masahiro... – silenciou-se ao ver Nana ao meu lado. Assim que a viu riu alto. – Ora, ora, vejam só... se não é a filha prodígio do clã Windstorm. Pensava que todos tivessem morrido em uma chacina em algum lugar da Europa.

Nana agarrou meu braço se escondendo atrás de mim. Foi a primeira vez que a vi assustada daquele jeito.

– Huuuuuuum...? – Malcom viu o gesto dela e riu ironicamente. – Sua namoradinha? Ela é muito nova para você, não acha? Hehehe.

– O que você quer? – perguntei secamente, ele sabia que eu não iria sentar e aceitar a presença dele ali tranquilamente.

Fechou os olhos e ergueu o canto da boca.

– Você sumiu depois que seu apartamento pegou fogo... pensava que estivesse morto – simulou uma voz triste com o pensamento.

– Não pegou fogo: explodiu, depois, foi você quem colocou os explosivos no apartamento – disse friamente, ainda de pé mantendo Nana atrás de mim.

Malcom riu alto, seus olhos brilharam.

– Sim, sim – afirmou. – Mas não tenho culpa que você abandonou a organização. Não pude resistir em te matar – disse em um tom travesso.

– E vai fazer isso agora? – perguntei firmando a arma em minha mão.

– Ora essa, é claro que não! – exclamou indignado. – Você e eu sabemos que uma explosãozinha daquela não iria te matar... além do mais, eu queria que você trabalhasse para mim, mas você desapareceu depois daquilo – curvou a cabeça tentando ver Nana. – Mas percebo que você não perdeu tempo hein, hehehe.

– Por que eu trabalharia pra você?

– Além de você não ter mais a proteção da organização? – Malcom perguntou retoricamente. – Você é um dos poucos gunslinger que conheço.

Quando eu ia falar ele me interrompeu apontando para a mesa de jantar do meu lado.

– Você devia ser mais cuidadoso em suas operações – disse apontando para vários DVDs em cima da mesa. – As câmeras de segurança registraram tudo – respirou fundo estalando a língua. – Turma interessante você reuniu, provavelmente a última pessoa do clã Windstorm e uma feiticeira elementalista.

Levantou-se.

– Considere isso um presente de natal atrasado, senhor Masahiro – disse secamente e parou do meu lado. – É melhor que fique em São Paulo por enquanto. Eu vou precisar dos seus serviços.

– E quem disse que eu vou aceitar? – perguntei olhando friamente para seus olhos.

Ele sorriu, olhou para Nana que senti se encolher ainda mais atrás de mim afundando sua cabeça nas minhas costas, depois novamente para mim.

– Por que você sabe o que posso fazer com a sua amiga feiticeira, essa sua namoradinha da família Windstorm e a quem for necessário... – disse em um tom mais de aviso do que de ameaça. – Você sabe do que eu sou capaz, sabe o que eu posso fazer.

– E por que você não resolve sozinho? – perguntei tentando manter meu controle.

Ele riu, sua expressão mudando radicalmente.

– Por que eu gosto de você, senhor Masahiro – disse caminhando em direção a porta. – Acho você uma pessoa bastante interessante.

Assim que ele saiu pela porta tive que conter minha raiva, desengatilhei a arma ainda com as mãos tremulas e a coloquei de volta no coldre. Nana afastou sua cabeça de minhas costas.

– Masahiro... a energia dele era...

– Eu sei – disse baixinho antes que ela pudesse terminar.

– Quem era ele? – perguntou depois de um tempo, sua voz quase um sussurro.

Suspirei e fui me sentar no sofá guiando Nana. Acendi um cigarro.

– O nome dele é Malcom – disse após um longo trago. – Alguém que eu devia ter matado há muito tempo...


Epílogo, parte 2: Um outro ponto de vista.


– Ela já está no quarto que a senhorita pediu – anunciou a enfermeira alegre.

– Hum, obrigada.

– Mas quem diria – continuou a enfermeira interessada em fofoca. – Nunca imaginaria algum relativo fazendo tudo isso por ela... além da mãe que parou de vir há algum tempo, ninguém mais veio.

A outra apenas assentiu sem demonstrar qualquer emoção. A enfermeira vendo que não conseguiria puxar assunto com a mulher, fez cara amarrada, baixou a cabeça e se retirou para o canto das enfermeiras.

O hospital era um dos melhores de São Paulo, não era qualquer pessoa que podia pagar pelo leito particular, mas foi o que ela fez para a garota, por mais que não a conhecesse, sentia que lhe devia isso.

Caminhou pelo corredor de portas e abriu a que a enfermeira tinha lhe indicado na hora da transferência da garota. Não havia trancas por ser um hospital.

– Quem está ai? – perguntou a garota sentada em seu leito, olhava pela fresta da cortina da janela quando a mulher entrou. – Quem é você? – perguntou assim que a viu atravessar o pequeno corredor de entrada.

– Nathalie? – perguntou sentando-se na cadeira ao lado da cama.

Nathalie assentiu brevemente não podendo esconder seu olhar assustado. Estava muito fraca para se mexer.

– Meu nome é Ling. Ling Wei – apresentou-se. – Eu transferi você para esse hospital, eles vão cuidar da sua reabilitação. Faz alguns dias que você despertou do seu coma. Lembra-se de alguma coisa?

Sacudiu a cabeça.

– Apenas alguns flashes... sonhos talvez... – levou as mãos ao rosto e continuou por entre elas. – Pesadelos na maior parte...

Ling sorriu e abriu mais as cortinas para que o sol entrasse, ainda vestia as roupas finas que usara para falar com a diretora do colégio, fazendo-a parecer ainda mais imponente.

– Na verdade – disse sem se virar para Nathalie. – Eu vim aqui para saber a respeito de um gato.

Nathalie arregalou os olhos.

sábado, 14 de março de 2009

Segunda Estação

A cadeira nunca foi tão desconfortável e a pilha de papel que enfeita minha mesa nunca foi tão gigante. Textos para revisar, pesquisas para concluir e não fazia tanto tempo que tinham acabado minhas férias; eu não via a hora de poder ficar longe de tudo isso o mais rápido possível. Quase não tenho tempo para escrever, o telefone dispersa minha atenção o dia inteiro; o ar condicionado não funciona direito. Calor. O Chefe, que tem feições de coruja e físico de porco passa de cinco em cinco minutos para olhar meu trabalho, sempre desferindo um olhar desconfiado para o caderno que começou a fazer parte da minha mesa.

Nesta semana teríamos reunião com o pessoal da matriz, lá de Brasília, para cobrir as eleições presidenciais, então era importantíssimo que estivéssemos organizados como formigas que se preparam para uma nova estação. Os cabelos deveriam estar cortados, os dentes brancos, o saco cheio e a cabeça vazia.

Tentava não pensar no que eu realmente gostaria de fazer do meu dia, da minha vida, nas coisas que poderia escrever, mas acho que é justamente nesse ambiente que o ócio dá às mãos à criatividade, juntas saem saltitantes para o outro lado da janela, da rua, do bairro e do país. Era justamente no trabalho, naquela sala e naquela cadeira com o estofado gasto que eu pensava mais no que eu não deveria fazer: como lavar a roupa, comprar a ração do gato, a janta de amanhã e nas três estrofes não nascidas. Não conseguia ler nada, nem a escolha sempre fácil para a capa do jornal: o estupro de crianças ou assaltos a banco, tudo muito bem regurgitado, em tom profético, prevendo o fim do mundo. Eu não conseguia decidir. Estou começando a acreditar que, como todo mundo, odeio meu trabalho.

Meus colegas não estavam diferentes. As mulheres da seção de moda conversavam baixinho, exibindo as unhas e se perguntando se o vermelho vinho combina mais que o roxo escuro. Falam dos cabelos, cremes, pomadas e como estão cansadas de trabalhar, sem nunca ter feito isso uma única vez na vida. A dupla da coluna de esportes estudava profundamente as formas da última capa da Playboy, o chefe passava, de cinco em cinco minutos na minha mesa.

Só o setor financeiro sorria; bocas cheias de dentes, hienas que nos observam sempre sorridentes, sempre confiantes; a raposa observando os cordeiros. Deus, esse calor me deixa mal humorado.

Quase onze horas. Nenhuma linha escrita, nenhuma palavra lida. Idéias circundavam minha cabeça, urubus cercando a carniça. As pessoas me olham e comentam que deixei meu humor em casa, esquecido na gaveta das meias. Sorrio. Olhos se cruzam, se encaram. Silêncio.
- Hoje é dia de feijoada, não vão esquecer hein? – anunciava o mais faminto, convidativo. Todos nos entreolhamos sorridentes, podíamos sentir o cheiro do torresmo, da língua, do molho com pimenta.- É nóis! – Confirmava o rapaz da máquina de xérox.

Meio dia em ponto o comboio foi à Padaria do Campos. As mesas estavam tingidas de gotas negras e restos de carne mordida. Sentamos os doze em três mesas que foram juntadas, improvisadas, perto de um ventilador que tinha apenas dois pedaços da hélice.

- São oito cumbucas de feijuca, mais sete tubaínas... – o chefe Coruja fez o pedido.
As moças planejavam como iam dividir o prato, se abanavam e se divertiam com os olhares maliciosos dos homens que observavam analiticamente as gotas de suor que surgiam nos pescoços finos e intocáveis como corrimão de ônibus; agendam programas para o final da semana com o arquivista, o pessoal da seção de esportes e o Chefe Coruja, que só vai comparecer após deixar a esposa e as filhas na casa da cunhada. Eu sentia minhas costas suadas e o cabelo molhado. Encarava o ventilador de dois dentes que pareciam sorrir para mim, inútil, objeto de mera decoração.

Chegaram os potes de barro fumegante, uma travessa de arroz, couve, pastéis, torresmo – o prato do dia chega sempre mais rápido; as tubaínas já estavam esquentando nos copos.
O colunista de esportes antes mesmo da primeira garfada já suava torrencialmente; ninguém o encarava temendo testemunhar a queda livre de algumas gotas de suor no prato de comida, que fatalmente terminariam em sua boca, misturadas com o arroz e o feijão.

- Domingão tem futebol lá no Ibira. Podemos contar com você? – perguntou me encarando. Como por hábito sorri. Sem motivo algum. Não sabia o que responder. Não queria jogar nada. Eu queria terminar o que eu comecei: quero escrever as três estrofes. Embora com esse calor, eu sei que vai ser difícil. Deus, como eu fico mal humorado no calor...

- Mas é claro que ele vai! – o arquivista respondeu por mim. – É o nosso melhor lateral direito! Tem que ir! – gritou alguém no fundo da mesa. Houve um movimento na mesa, os homens olhando para mim, mastigando de boca aberta, espantados com a minha confirmação demorada, é claro que eu ia. Eu sempre fui e sempre irei. Não era discutível e por isso não seria mais assunto.

Senti algo subir pela minha garganta, as gotas de suor cada vez mais geladas escorrendo pelas minhas têmporas. Será que tinha um toucinho estragado na feijoada, seria o lombo, a lingüiça, a tubaína? Uma revolta interna. Algo não quer se conformar com todo isso, essa toalha de plástico furada por bitucas de cigarro, frontes reluzentes e sorrisos manchados com pedaços de feijão preto. Está vindo cada vez mais perto da minha garganta, chegando na boca, algo inesperado, um grito contido. Não poderia simplesmente explodir, sujar tudo com meu inconformismo mudo. Não naquele calor, não ali na padaria, não a feijoada, é o calor. Comecei a me sentir fraco, cansado de ouvir as pessoas decidindo meu final de semana. Não quero mais isso. Senti um gosto estranho na minha boca, palavra diferente. Preciso falar algo. Não posso deixar que comandem minha vida com a facilidade que levam o garfo com porco e farofa à boca. Não quero sumir como o gelo no copo sujo, metade cheio de tubaína. Eles precisam ouvir minha voz, minha vontade. Tomei coragem; mastiguei tudo o que tinha para mastigar, respirei fundo, abri a boca, articulei alguns sons, me olharam furtivamente, na expectativa expectorante do simples abrir a boca e o som surdo da voz. Agora é a minha chance, encarei as mulheres, o Chefe Coruja e o rapaz na ponta da mesa. Engoli seco e sorri. Como sempre, me faltam palavras.