segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Causa e Efeito

1 – Ônibus:
Por descer apenas no ponto final, esperou até a última parada do ônibus para passar a catraca. Restando apenas ele e uma família que discutia no fundo do ônibus, ignorou-os passando seu cartão pelo leitor da catraca.
– Aqui é o final, moça! – gritou o motorista, ansioso em levar o ônibus de volta a garagem.
– Espera seu motorista, tamo tentando encontra o celulá aqui que caiu! – a mulher disse da última fileira de assentos.
Um de seus cinco filhos, o mais velho, alheio a presença dele, ficou na porta ignorando seus pedidos de licença. Olhava pra mãe dando risada, acreditando que, ficando parado bem no meio da porta, estaria atrasando o motorista.
Cansado de pedir por licença, em sua fúria exasperada, ele chutou o moleque com tamanha força que faria um jogador profissional de futebol sentir inveja. O chute, ou bicuda, no meio da bunda do elemento era tanta que faria todos da barreira em frente ao gol se dissipar, o goleiro provavelmente já teria fugido no meio do percurso da bola.
Caindo sobre o chão, o moleque desacordado – ou talvez morto em prol da defesa de seu time covarde diante o time rival, talvez se arrependendo de não ter corrido da bola como os outros o fizeram – se estendia com a face colada ao chão, seu corpo apenas um amontoado de carne que acaba de ser amaciada por um forte impacto da sola de um sapato social de 50 reais.

2 – 3 horas antes.
– O seu merda! – vociferou o homem a sua frente. – Você chama isso aqui de trabalho bem feito?!
Naquele instante, como uma ideia que aterrissa arrebatadoramente sobre o consciente, ele teve um vislumbre. Imaginou se aquele homem a sua frente, seu chefe há mais de 10 anos, teria dito as mesmas palavras que gostava tanto de usar com os outros, para o médico que acabara de realizar seu parto.
– O seu merda! – gritava para o médico que o tinha nas mãos. – Você chama isso aqui de trabalho bem feito?!
Com a cena vívida em sua cabeça, ele não pode conter uma pequena risada?
– Tá rindo do que? – enfurecido, seu chefe berrava a beira de vomitar seus pulmões. – Você trabalha a quanto tempo aqui? Vinte anos?! E eu sou seu chefe a dez! Por que será, né? Um merda feito você que faz um trabalho de merda, não podia ser chefe nunca!.
O fato de ser seu chefe, nada tinha a ver com sua requintada educação em tratar os subordinados, mas sim única e exclusivamente pelo fato de ser um grande chupador de saco. Ele chupava tanto o saco dos superiores que, se fosse vendido nas sex shops, seria de longe o produto mais requisitado por todos os homens, e possivelmente para algumas mulheres.
Ele se encolheu na cadeira cerrando os olhos, não por medo, mas pelo fato de que as gotículas que eram expelidas junto as palavras dele caiam sobre ele como uma forte garoa.
– Sai da minha frente! Vaza daqui! Volta pra casa que você não presta pra fazer merda nenhuma!
Depois de ver seu relógio, ele se levantou pegando suas coisas. Pegaria o ônibus cedo, vazio e tranquilo, com um pouco de sorte chegaria até antes do almoço servido na padaria perto de sua casa.

3 – Direção defensiva
Pisando fundo, o rapaz exigia tanto de seu carro que os cavalos presos dentro dele berravam, desesperados em tentar fugir daquele condutor insano. Acelerando, brecando, ultrapassando, acelerando, pisando, gritando, o carro derramava lágrimas de fumaça implorando por uma morte rápida, uma vez que sobreviver era um sonho antigo e inalcançável.
– Filho da puta! – gritou de dentro do carro, com a força de um boxeador, o rapaz socava a buzina, mas rouca de tanto uso, se negou a gritar, soltando apenas um sopro, um vômito. – Dá a seta seu filho da puta! Tá com essa porra de vareta atolada no cu?! Então para esse carro e fica rebolando nela, seu cuzão!
Ultrapassando o carro a quem dirigia seus calorosos elogios, deu de cara com outro logo a frente.
– Puta que o paril! – desta vez, descontrolado, gritou pra fora da janela. – Hoje é dia da AACD aprender a dirigir! Vai pra puta que o paril!
Mais uma vez desviou do carro, fez isso tantas vezes ao longo de sua vida, que acreditava ser um mestre na direção, ninguém era melhor que ele, na verdade, todos deviam deixar seus carros em casa para que pudesse exibir sua mais alta habilidade automobilística. Emparelhou ao lado do carro e olhou pela janela.

4 – Trauma
Em seus 18 anos, com habilitação que acabara de tirar, a garota dirigia com todo o cuidado do mundo, analisando meticulosamente cada movimento e postura que aprendeu durante as aulas de direção. Atrás de seu carro, um outro acelerava e parava como um touro enfurecido que se preparava para a estocada na bunda do toureiro. Ignorando-o e prestando atenção a rua e a sua velocidade, a garota prosseguiu.
Quando o carro que estava atrás dela finalmente saiu e emparelhou ao lado do acento passageiro vazio, a garota tentou ignorar as palavras que eram fulminadas a ela.
– O sua puta gostosa! – sua voz era tão alta e clara que um surdo podia ouvi-lo do outro lado do planeta, enterrado em uma base secreta militar. – Vai pilotar fogão e deixa eu engatar meu pau na tua buceta!
Buscando abrigo por trás do volante, a garota se encolheu, lágrimas brotavam de seus olhos e seus lábios tremiam. Mas ainda assim ignorou o homem, continuando a seguir o caminho de volta a sua casa.
A garota também ignorou o barulho que se sucedeu em seguida. O rapaz que segundos antes estava gritando obscenidades dignas de filmes pornô que buscavam saciar o mais sombrio dos fetiches, perdeu o controle de seu carro, fazendo-o com que fosse arremessado pouco a frente de um ônibus que estava parado.

5 – Música clássica erudita
– Hoje é dia de um funkzinho e dar um traço em umas menininhas!
Olhando por cima do jornal que lia, o cobrador olhava desinteressado para o que o motorista falava, sem se importar com o fato de que fazia dos ouvidos dos passageiros, um banheiro químico no final de uma festa rave.
Soltando um longo suspiro, o cobrador agradecia a todas divindades mitológicas por seu turno estar acabando. Ignorando a fila de passageiros que se formava aguardando que ele recebesse o dinheiro e libera-se a catraca, voltou-se novamente ao seu jornal.
Por que esses imbecis não comprar a porra de um bilhete único? É tão fácil, até um jegue consegue fazer isso.
Quando uma mulher chamou sua atenção, por fim e já irritado, dobrou o jornal e recebeu o dinheiro. Em sua mente, amaldiçoava aquele motorista que acreditava que funk era música clássica, que era a origem de todas as músicas, a melhor do mundo, e por isso deveria ser tema principal de todas as maiores orquestras. Para o motorista, o funk deveria ser imortalizado, acima de qualquer “sonzinho de frutinha, feito aquelas barulheiras que chamam de música clássica. O que tem de música clássica nessa porcaria? Só barulho, funk sim é música!” Lembrou-se do que o motorista tinha falado horas antes, no meio de seu turno.

6 – Efeito
Ignorando a mulher, mãe dos quatro filhos – o quinto estava estatelado no asfalto – que xingava-o de tantas formas diferentes que para compreender a todos seria necessário um dicionário especializado tão grosso quanto a bíblia e o corão juntos, ele saiu andando mostrando o dedo do meio para ela.
Despercebido, não reparou no carro desgovernado que vinha em sua direção. O automóvel chocou-se contra ele, o arremessando no ar. Seu dedo girava em sentido espiralado tão rápido quanto uma furadeira elétrica de trinta mil rotações por segundo, uma habilidade com o dedo que causaria inveja nos atores pornô e despertaria o desejo mais selvagem das atrizes. Caindo no meio da rua após seu salto ornamental triplo, com cinquenta piruetas, dois mortais, cinco estrelas e com o giro frenético do dedo do meio, acabou por tornar-se companheiro de chão do moleque que tinha chutado a pouco.
O carro, não contente ao se chocar contra uma pessoa, deparou-se violentamente contra um poste. O rapaz que dirigia foi arremessado lateralmente, mas diferente do fim que o moleque e ele tomaram, o veloz voo que o rapaz iria tomar acabou interrompido pelo mesmo poste contra que seu carro havia se chocado. Os cavalos presos ao motor de segunda mão, haviam finalmente se libertado e estavam caídos no meio da avenida, no sentido contrário, causando uma série de colisões entre outros automóveis pegos despreparados por esse estouro da manada.
Puta que o paril! – gritou o motorista, mas ao olhar para trás, o cobrador já havia deixado o ônibus há muito tempo.
Levando as mãos a cabeça, o motorista ficou parado olhando a cena cataclísmica. Era a última ronda, queria levar o ônibus de volta a garagem e voltar para sua casa, tomar um banho, ensaiar uns passos, tudo para o show de funk que iria acontecer somente a noite. Tinha que ensaiar seus passos, isso era importante. Da última vez levou pra casa duas mulheres que conheceu no show, fez tanto sexo que sentiu-se como um coelho no cio que tinha tomado dois comprimidos de viagra. O que o motorista não sabia era qual das duas mulheres tinha dado de presente a ele uma verruga no pênis.
Descendo do ônibus, decidiu esperar somente pela ajuda dos bombeiros e da ambulância.
A mãe dos filhos gritava na rua:
Bem feito! Bem feito! Deus castiga! Deus castiga! Tem que morrer mesmo seu desgraçado! Deus é pai! Deus é justiça! Tem que morrer mesmo seu desgraçado!
E repetia como uma vitrola quebrada cujo disco ficou desafinado após tanto uso descuidado. Com diferença que um disco riscado, quebrado, estourado, era menos irritante que a voz da mulher. Pelo menos eram o que os curiosos que se aglomeravam na cena diziam:
Cala a boca mulher! Já entendemo!
Vai pro inferno! Eu sou mãe de cinco filhos – dizia como se a quantidade de filhos servisse de desculpa.
Na verdade, se a mãe soubesse contar, restaram apenas quatro filhos, mas isso não fazia diferença para ela, já que estava ocupada de mais vociferando contra todos em volta.

7 – Trauma 2
A garota de 18 anos chega a sua casa após um dia estressante na faculdade e na rua. Sua mãe a recebe preocupada, lágrimas escorrendo por seu rosto.
O que foi, mãe? – pergunta a garota escondendo seus olhos inchados, resultado de momentos antes no transito.
Você não viu, filha? – disse a mãe da garota ainda apertando-a nos braços. – Aconteceu um acidente horrível na avenida que você passa. Foi agora a pouco... eu pensei que você tivesse envolvida.
A garota acolheu a mãe, dando-lhe tapinhas de consolo nas costas.
Não se preocupa, mãe – disse a filha após sua mãe se acalmar. – Eu não vou mais dirigir... eu desisto. Isso realmente não é pra mim.
Mas, por que, filha?
Só tem maluco dirigindo hoje em dia... a partir de amanhã eu vou voltar a andar de ônibus.
Sua mãe assentiu, aliviada por sua filha não estar envolvida no acidente. Em seguida a garota foi para seu quarto, abraçando-se a sua almofada, ela se encolheu e se pôs a chorar, traumatizada, nunca mais queria ficar atrás de um volante.

8 – Dia de cão
Deitado sobre o raio de Sol que cruzava aquele dia frio, o cãozinho observou todo o evento se desfazer em sua frente. Erguendo as orelhas quando a multidão de curiosos se formou, decidiu levantar-se. Era essa sua chance.
Abanando o rabo, aguardou ansiosamente para que as pessoas começassem a perder interesse no que viam. Quando o momento foi oportuno, ele deu umas latinhas e passou a dançar sobre suas duas patas. Caindo ao chão, ele encarava as pessoas que voltavam a atenção do sangue esparramado pelo asfalto, para o cãozinho fofinho vira-lata. O olhar do cãozinho era tão meigo que nem mesmo o mais hábil e desesperado mendigo conseguia o imitar. As pessoas faziam carinho nele.
Olha que cachorrinho mais lindo! – exclamou uma mulher.
Nossa, que dó dele! Como podem deixar ele assim, abandonado. Largado na rua. Tadinho – uma mulher balançava a cabeça em reprovação.
O cãozinho teve sorte, uma senhora jogou um pedaço de salgado para ele. Enquanto devorava sua refeição, todos o apreciavam como uma joia rara, ignorantes às sirenes que rondavam o local do acidente.
Oh! Vem cá, amiguinho! – um mendigo chamou pelo cãozinho que o obedeceu fielmente. Saltitando por um abraço de seu dono.
Todos que até então observavam o cãozinho, desviaram seus olhares ao mendigo. Enojados, eles viraram suas caras. Alguns continuavam a seguir seus caminhos, outros foram novamente atraídos pelo acidente, sedentos em ver os paramédicos agirem, outros, os que passaram a mão na cabeça do cãozinho, limpavam discretamente as mãos em suas roupas.
A perversão da curiosidade se espalhava como um vírus. Todas as pessoas se deleitavam com a desgraça alheia, como se toda a cena catastrófica servisse como um forte estimulante afrodisíaco para suas almas que se excitavam furiosamente com tudo aquilo.
Logo essas pessoas perderiam novamente o interesse.
Logo essas pessoas se esqueceriam do cãozinho e do mendigo.
Logo essas pessoas balançariam sua cabeça em reprovação, pesando: “essas pessoas de hoje, não tem jeito.” Outras pensariam: “Gente sem cuidado nenhum, aonde esse mundo vai parar?” Contudo no fundo, em uníssono, todos estariam suspirando aliviados dizendo: “Ainda bem que não foi comigo. Eu sou cuidadoso.”

9 – Fim do turno
No carro de bombeiros, o chefe de equipe suspirou profundamente. Faltava apenas quinze minutos para que seu turno acabasse quando recebeu o chamado. Um acidente trágico se desenrolara próximo ao departamento em que trabalhava.
Lamentou-se profundamente por aquele infortúnio. Era aniversário de sua filha. Não apenas tinha comprado um presente especial para ela, mas como também prometido que iria a sua festa. Dez anos, e nunca conseguiu participar de uma festa sequer, aquela seria a primeira em que iria. Tinha tudo preparado, planejado, revisado e checado, tanto quanto uma estratégia de invasão e resgate da SWAT. Mas nem todo planejamento é livre de acasos, e desta vez, para seu azar, o acaso ocorreu no único instante em que não poderia.
Estamos chegando – informou a todos do carro.
Vendo o local do acidente, o pior que já vira nos seus 35 anos de trabalho. Ele sorriu.
Está tudo bem – murmurou de si para si. – Afinal, é para salvar vidas que estou aqui.
Saiu do carro de bombeiros correndo para próximo dos paramédicos.
E toda a vida vale a pena ser salva – continuou em seus pensamentos, enquanto corria em direção ao que restara do carro do rapaz.

Um comentário:

Anônimo disse...

Primeiramente: HAHAUHAUHAUHAA... Mto bom!
Me divirto com esse seu humor distorcido. Mas mandou bem a real do cotidiano de uma cidade grande. O legal que você abordou de um jeito que possibilita outras visões dos fatos. A forma como o enredo desenrolou me lembrou aquele filme Crash - No limite.

Parabéns, ficou mto bom.