quinta-feira, 3 de abril de 2008

Do Jabaquara ao Tucuruvi

As duas foram jogadas para dentro do metrô, como se duas ondas enormes as tivessem empurrado com toda a força que só a natureza pode exercer sobre nós, pobres seres humanos.

Por puro capricho da sorte ou brincadeira do acaso, sentaram-se uma ao lado da outra. A que se encontrava ao lado da janela era Maria e ao seu lado sentou-se Josefa, que ajeitou com presteza seu filho José, que estava sentado em seu colo.

Maria trabalha com vendas, adora falar. Deus lhe imbuiu de uma eloqüência digna de vendedores de dietas miraculosas nos programas de final da tarde. Adorava ler, lia tudo! Sabia todas as estações do metrô de cor e salteado. Conhecia todos os remédios para gripe, quais suas composições e melhores ocasiões para usá-los. Conhecia um pouco de tudo, enfim, uma chata.

Josefa, por sua vez, mal sabia escrever seu nome, era uma mulher de vida humilde, família humilde, aparência humilde, fala humilde, enfim, uma chata. Casou-se aos 16 anos com Diego, uma semana depois estava grávida de José, o garoto de 2 anos sentado em seu colo. José, conseqüência da cadeia hereditária e por galhofa de Deus, era muito parecido com a mãe. Assim, tinha uma vida humilde, família humilde, aparência humilde, enfim, um coitado.

Enquanto o metro cruzava a estação Conceição, Maria dirigiu-se a José, fez aquela expressão de espanto, forçou a voz em tom infantil, como que para agradar o pobre rapaz e disse:

- Mas que menino lindo! Qual o seu nome menino lindo?

O rapaz apenas a olhou. Não mudou a expressão séria, não sorriu, pelo que eu me lembro, sequer piscou. Maria olhou-o, depois fitou a mãe e insistentemente dirigiu-se ao menino novamente:

- Ué? Está bravo? A mamãe brigou com você? – E o menino permanecia imóvel, irresoluto, como uma estátua.

Maria fez uma expressão de desentendida, deu de ombros e passou a encarar a janela do metrô, sentindo-se completamente contrariada. A mãe de José, Maria, disse em voz baixa, quase sussurrando: “Ele não é muito de falar não, moça”. O fato de Josefa ter se manifestado a respeito do “diálogo” havido despertou a expressão extremamente sapiente que se perpetrava no rosto de Maria.

- Não é de falar? Como pode? Um menino tão grande, tão forte, tão bonito! – Dizia olhando para o rapaz na esperança de que suas palavras surtissem algum efeito mágico e o menino despertasse de seu transe para lhe agradecer enormemente por ter lhe curado da mudez.

- É – Respondeu a mãe, no mesmo tom de voz – Ele é mais de gemer, chorar e fazer barulhos estranhos quando quer algo.

- Entendo. Exatamente como um namorado que eu tive. – Ficaram as duas em silêncio olhando para o chão.

- Quantos ele tem? – Indagou Maria. – Diz pra moça quantos anos você Zé, diz? – O menino envergonhado escondeu o rosto entre o peito da mãe.

Suspeito que este diálogo não o estava agradando nem um pouco.

- Sabe, - Maria sempre começava suas preleções assim. Seus amigos mais íntimos quando ouvem o “Sabe” já compreendem o que vai se seguir, e logo inventam alguma razão para fugir ou tentam suicídio (o que é mais comum). – Eu já trabalhei com crianças. É muita estranha essa mudez. Tenho certeza disso. Já li em muitos livros. Ele com certeza tem mais de 1 ano e meio, já deveria estar falando. Ele canta?

Josefa não teve tempo de responder pois Maria continuou:

- Pode ser psicológico, já dei uma palestra sobre crianças muito retraídas... – Passaram a estação São Judas, Saúde, Praça da Árvore, Santa Cruz, Vila Mariana, Ana Rosa, e Maria continua incessante:

- Nos Estados Unidos, fizeram uma série de testes com macacos mudos... – Josefa fingia prestar atenção com maestria, pois parou de entender o que a outra estava dizendo há umas 5 estações atrás.

Quando o metrô se aproximou da estação Sé, Josefa se levantou, fato que obrigou Maria a interromper, muito a contragosto, o que dizia. Justamente agora que chegaria na parte mais importante! Ia discorrer sobre o que a mudez significada para os Incas, e compararia este significado com a doutrina existencialista de Kierkergaard.

- Bom, eu desço aqui. Muito Obrigado moça. Foi um prazer. – Disse Josefa sem saber exatamente pelo que estava agradecendo. Maria limitou-se a sorrir e acenar com a mão. Tenho certeza que em sua cabeça continuava discursando energeticamente.

José que já andava ao lado da mãe, segurando sua mão, surpreendentemente proferiu as únicas palavras que iria dizer antes dos 15 anos:

- Mamãe, eu prefiro ficar mudo do que falar como essa mulher!

- Eu também filhinho, eu também.

Um comentário:

Murphy Brown disse...

Embarquei no metrô com Josefa, Maria e José. Acredito que o autor deve fazer com que viajemos dentro de seus textos. Eu fui com teus personagens do Jabaquara ao Tucuruvi.