sexta-feira, 13 de março de 2009

Primeira Estação

Os domingos nos arredores das ruas cinzentas do MASP são agitados, infestados por barracas de madeira velha, cobertas por plástico azul, roxo ou índigo; nelas vende-se toda sorte de objetos inutilizáveis por senhoras de riso simpático, amarelado pelo cigarro. "A gente fuma para passar o tempo", dizem elas com seus sotaques indecifráveis, de mãe e avó. Mas se esquecem de que o tempo passa a todo instante, com ou sem cigarro, naturalmente pinta-lhe os dentes, os dedos, modifica a textura da pele, a voz, tira sempre um pouco mais do que deveria, com ou sem o cigarrinho de todo dia.

Passo por elas e por senhores barbados de cabelo branco, vendendo móbiles, vestindo camisetas com um rosto com feições dolorosamente messiânicas e boina de guerrilheiro, aproveitam toda oportunidade que tem para falar de umas idéias irreconhecíveis, tortas e mal lembradas de uns senhores chamados Trotski e Lênin. Falam delas com um sorriso estranho e brilho nos olhos estrábicos. Sussurram para si mesmos: um dia eles hão de encarnar nesse Brasil, encarnam sim. A bandeira do Brasil será vermelha como a cor da camisa do Che...

Entro no parque Trianon pela entrada dos fundos, escondido do burburinho e dos vendedores de tabuletas indígenas. Não tem escapatória: aos domingos este recanto da paulista se torna o Embu das Artes.

Caminho entre a sombra das árvores e o cheiro de ar puro que meu cérebro mal consegue identificar. Seguindo por esquerdas e direitas encontrei a estatua de Fauno, esculpida por Vitor Brecheret. Os braços longos tocando os próprios ombros, o olhar de pedra perfurando meus próprios olhos hipnotizou-me por um instante. Será que este lugar, este ponto em que milhões de pessoas pisam com suas solas sujas de chiclete e merda de poodle seria um dos pontos sagrados para receber a visita desse Deus da natureza. Se eu recebesse sua visita conseguiria escrever meu poema? Mas que peles sacrificaria, já que nada é de graça neste mundo: A minha? O Boris?

Ainda em busca de algo inominado, deparei-me com a estátua de Aretuza. “Ela representa o que eu procuro: a fonte, a vida, a água”, pensei enquanto sentava num banco de cimento bem em frente a ela.

- Gostosa, né? – perguntou a voz rouca de um sujeito que parecia ter vívido toda sua existência entre essas árvores e que fumava guimbas de cigarro deixadas pelos cantos – tenho certeza, não sei porque, mas ele prefere as sujas de batom.

Ignorei a pergunta que cheirava tresvario, tal qual seu hálito.

- Ei – desferiu um tapa no meu ombro – to falando contigo rapá!

Olhei-o assustado e meneei a cabeça negativamente: “não sei... não sei...” respondi.

- Essa dona me lembra a Maristela. Ah, Maristela, que saudades. Se lembra da Maristela, rapá?

- Não-. Respondi, fingindo naturalidade.

- Essa ae é mais gostosa que ela. Mas as duas são boas – abria a boca sem dentes enquanto encarava a estátua.

Eu olhava ao meu redor, tentando captar no ar a melhor hora para fugir e deixar esse homem sozinho com a estátua da deusa.

- Você sabe que a Maristela até brincava que era a reencarnação da Aretuza. Eu falava que não, ela tinha um fogo digno de Afrodite, isso sim. – ria uma risada rouca, monstruosa, retumbante. – Tem certeza que não lembra da Maristela?

Balancei a cabeça negativamente, impressionado com as palavras recém proferidas por aquele sujeito sujo e que tinha mais folha no corpo do que as árvores ao seu redor. Achei que delirava por uns instantes.

- Hoje até que está tranqüilo por aqui. Vira e mexe tem aqueles bolivianos fedidos vendendo ervinha como se tivessem no país deles. Não suporto isso! Sempre que vejo um, já dou logo um apavoro. – me dizia aguardando aprovação, que eu fazia questão de prontamente garantir balançando a cabeça positivamente.

- Sabe, meu chapa. A Maristela antes de partir de volta para o outro mundo – suspirou e ficou em silêncio por uns instantes, contendo lágrimas que insistiam em fazer seus olhos reluzir – Foi o domingo mais triste da minha vida. Sempre disse que morrer no domingo era sacanagem, mas ela queria me sacanear mesmo: bateu as botas num domingo, ao meio dia. É mole? Então, ela falava que queria flores em tudo quanto é canto, até o vestido que ela tava usando era florido. Ela adorava umas flores roxas, nem sei o nome. Engraçado como as mulheres gostam dessas coisas, mais do que sapatos. Enchi tudo de flores, joguei flor até no esgoto. Mais engraçado ainda é que na hora de dizer algumas palavras em homenagem a falecida não me veio. Nem um arroto. Só consegui recitar aquele poema do Basho. No tanque morto, o ruído de uma rã que mergulha. Sabe? Conhece esse? Aquele foi um domingo complicado – sorria encarando os olhos de concreto da Aretuza, que parecia sorrir para mim.
Fiquei imóvel. Atônito. Não sabia se era apenas impressão, auto-sugestão ou qualquer baboseira desse tipo. Aquele morador da rua recitou Basho! Olhei para a figura esculpida a minha frente. Ela sorria para mim, do meu preconceito de classe média que julga pelo cheiro e quantidade de dentes que se tem na boca. Olho para onde estava o sujeito, um pouco envergonhado de mim mesmo e das palavras que não proferi. Ele não estava mais lá. Uma folha vermelha ocupava o seu lugar, exalando o mesmo cheiro de lixo que o homem exalava. Aretuza agora me encarava séria, impávida, tal qual a idéia inicial do artista. Acho que o parque do Trianon, nos domingos de primavera tem dessas coisas inexplicáveis. Continuei sentado no meu banco de concreto por mais algumas horas e voltei para casa com um sorriso idiota no rosto.

Nenhum comentário: