domingo, 27 de setembro de 2009

Duas Luas - Três

Suspirei resignado com ela em meus braços. Seu sangue escorria por cortes profundos em seus braços e por baixo dos rasgos de sua roupa. Era como se enormes garras a tivessem cortado.

– Deixa eu adivinhar – disse olhando-a nos olhos. – Sem médicos?

Com um leve meneio da cabeça ela assentiu, sorriu fracamente e suas pálpebras desceram a deixando inconsciente.

Não seria a primeira vez que cuidava de ferimentos de alguém, particularmente de uma mulher. Porém ao tirar a roupa dela um frio me percorreu a espinha. Senti-me como se estivesse fazendo algo pecaminoso, maculando algo extremamente sagrado.

Balancei a cabeça. Era necessário. Já estava com agulha e linha nas mãos enquanto observava o sangue escorrendo pelos cortes do corpo dela, manchando o lençol da minha cama.

Espera. Estariam os cortes menos profundos que minutos antes? Perguntei-me ao olhar alguns deles que já pareciam arranhões.

Mas o que...?! Aproximei meu rosto e examinei um dos ferimentos mais profundos na altura de seu estômago. Somente de perto percebi que estava se fechando naturalmente.

– Tudo bem – disse a mim mesmo. – Já vi coisas mais estranhas que essa...

Guardei a agulha e a linha, depois limpei os cortes e coloquei curativos por cima deles.

Apesar de não ser de meu feitio forçar outras pessoas responderem minhas dúvidas, essa garota precisava esclarecer as coisas. Principalmente por ter manchado meu lençol e o chão da minha sala de sangue.


Quando preciso de um tempo para pensar fico na sacada do segundo andar de casa, sentado em uma das cadeiras fumando um cigarro. Acompanhado de uma xícara de café, observava as casas vizinhas e o céu escuro de inicio de madrugada. A brisa fria e solitária cruzava as ruas desertas.

Senti uma mão macia pousando em meu ombro, ao virar-me vejo a garota que estava a pouco tempo desmaiada em minha cama, ferida por cortes profundos.

O que me espantou mais do que sua presença a meu lado foi sua roupa. Uma de minhas camisas cobria o seu corpo.

– Ei... isso é meu – foi tudo que consegui dizer ao vê-la assim, repentinamente.

– Você queria que eu viesse aqui fora nua? – disse irônica. – Ou você não se contentou o suficiente de ver o meu corpo quando tirou minhas roupas?

Tremi. Só não sei se foi por causa do calafrio na espinha ou por causa da mão que se fechou abruptamente em meu ombro, como uma garra muito forte, mas macia e morna. Talvez tenha sido por causa das duas coisas.

– Eu não...

Entretanto, antes que pudesse falar qualquer coisa, a garota correu em direção ao parapeito da sacada e pulou sobre ela.

domingo, 20 de setembro de 2009

Duas Luas - Dois

Tem comida na geladeira. Fique a vontade para comer e ficar o tempo que quiser.

Quando sair coloque a chave da porta na caixa de correio na entrada.


A garota ainda estava dormindo quando despertei, na poltrona da minha sala já que ela estava na única cama que tinha, para ir ao trabalho.

Não me incomodava ter uma pessoa completamente desconhecida em minha casa. A única coisa de valor que tinha seria um laptop com mais de dez anos de uso que servia apenas para pesquisa e e-mails. Também não acredito que houvesse pessoas que roubariam meus livros, então minhas posses estavam resumidas a coisas relativamente sem valores monetários.

Por volta da tarde eu recebi uma ligação no celular.

– Yo, Du – cumprimentou-me a mulher de voz sedosa e animada.

– Huh?! – fiquei surpreso. – Eu já disse pra não me ligar em horário comercial!

– Oh? – disse irônica. – Em uma empresa tão grande como essa em que você está, dificilmente vão se importar com alguém que atende uma ou duas ligações pessoais.

Olhei em volta. Realmente todos os parecia me notar.

– E então – prosseguiu ela. – O que encontrou?

– Não muita coisa – respondi desapontado comigo mesmo. – Nenhum funcionário com quem falei nunca sequer viu o dono da empresa. Revistas e jornais também nunca conseguiram uma foto dele. Nem mesmo o chefe do meu setor conhece o dono da empresa. Ele simplesmente parece não existir.

– Hum... Mas ele existe, disso podemos ter certeza – ouvi um suspiro do outro lado. – De qualquer forma tome cuidado, você sabe o que aconteceu com as pessoas que tentaram encontrar ele.

Ela não precisava me lembrar. Todos que tiveram a curiosidade e audácia de tentar descobrir o rosto por trás de uma das maiores empresas de tecnologia do mundo, acabaram morrendo. Obviamente morreram por causas naturais, algumas se mataram jogando-se em frente a trens ou caindo de prédios. De uma forma ou de outra, ninguém podia ligar a empresa com essas mortes.

Ninguém exceto Yumei, minha verdadeira chefe.

– Não se preocupe – disse, prestes a desligar o celular.

– Ah! – lembrou-se ela. – Não se esqueça de que são os gatos que escolhem os seus mestres – disse com voz irônica. – Claro que não se pode levar em consideração o gato de Nabeshima, hehe.

– Huh? Qual o problema com gatos agora? – perguntei erguendo uma sobrancelha, mesmo sabendo que ninguém veria.

– Nada – respondeu sarcástica, dando uma risadinha. – Apenas me lembrei da lenda dos gatos serem guardiães dos mortos.


Diferente do dia anterior, voltei para casa no horário habitual. Chequei minha caixa de correspondências na entrada do prédio. Vazia. Isso significava que a garota de cabelos azuis não tinha ido embora. Sorri ironicamente. Pelo menos podia perguntar a ela o que aconteceu antes de encontrá-la ainda no asfalto.

Subi as escadas e abri a porta, porém ninguém estava lá. Procurei no quarto, cozinha e banheiro. Sentei-me no sofá da sala cocando a cabeça. “Talvez ela tenha esquecido de devolver a chave,” pensei.

Tomei banho e jantei. Passado das onze horas, enquanto lia um livro no sofá da sala, ouvi a porta se abrindo.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Duas Luas - Um

O cheiro pútrido do ácido estomacal se misturava ao cheiro de ferro do sangue. Pedaços de corpos estavam espalhados pelo chão e empalados em enormes estacas fincadas no asfalto. Os escombros do que antes foram enormes apartamentos comerciais e residenciais, e aqueles esqueletos que sobreviveram a destruição do quer que tenha acontecido aqui, cercam a carne e os ossos até além do horizonte do céu tingido de escarlate e nuvens negras.

Colocando as mãos sobre o rosto tento fugir da amarga realidade. O ar que entra em meus pulmões queima como brasa. Como vim parar aqui, não faço idéia, mas sei que é o mundo em que um dia vivi.


Acordei em meu escritório com a luminária da mesa acesa, a luz fluorescente estalando de constante uso, meu redor está escuro e vazio. Olhei para meu relógio, três da madrugada de quarta feira. Não era a primeira vez que tinha dormido em cima da mesa por excesso de trabalho.

Peguei minhas coisas e sai do escritório deserto. Na portaria me despedi do guarda noturno.

– O senhor não quer que eu chame um taxi? – perguntou ele por trás do balcão.

– Não, obrigado – respondi. – Vou a pé mesmo – acenei para ele passando pelo hall de entrada.

Do trabalho até minha casa era cerca de vinte minutos, o problema eram as ruas estreitas e escondidas das demais. Por ser madrugada não me incomodei muito, a maioria dos assaltantes e mendigos deveriam estar dormidos ou bebendo nos bares afastados da região.

Isso não mudava o fato de tudo estar deserto e um tanto intimidador. As portas de ferro das lojas fechadas, as casas e apartamentos com suas luzes apagadas, os barulhos dos motores dos carros ecoavam distantes, como se estivessem em um sonho.

Continuei caminhando até que algo inesperado entrou em meu campo de visão.

Banhada como um ser angelical pela luz do poste que projetava um círculo amarelado no chão, uma mulher estava deitada de costas para baixo. Seus longos cabelos azuis –que lembrava o azul de jeans claro – e lisos estavam espalhados, mas não ousavam cruzar o limiar da escuridão. Sua pele alva reluzia uma incandescência casta e meiga. Usava uma longa saia de um azul muito mais escuro que seus cabelos, e uma camisa branca abotoada até a altura de seu pescoço.

Me aproximei o mais rápido que pude. Felizmente ela estava respirando, porém parecia inconsciente.

– Ei – disse pegando-a nos braços. – Garota? Ei! – balancei-a. Obtive apenas um fraco movimento de suas pálpebras fechadas. – Espere, vou chamar uma ambulância.

No instante em que ia pegar meu celular, a garota agarra com firmeza minha mão com o aparelho. Nossos olhares se cruzam, seus olhos são azuis como seus cabelos.

– Não! Eu vou ficar bem – disse com uma voz fraca. – Só preciso descansar...

Logo em seguida voltou a fechar os olhos caindo em um sono profundo. Cocei a cabeça e olhei em volta. Ninguém.

Sem outra alternativa a carreguei até minha casa.