segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Reprise - Parte 1 de 3

Quando acordei os fogos já iluminavam o céu e transformavam a noite em dia. Já era ano novo. Eu, para variar, bebi demais. Como toda noite de ano novo em São Paulo, chovia, e muito; não me incomodei. Na verdade sempre me surpreendi pelo fato que, não obstante a chuva, os fogos de artifício ainda subiam, explodiam, ressoavam, afastavam os demônios antigos e traziam os novos ares.

Não lembrava porque havia ingerido tamanha quantia de álcool, sequer lembrava porque havia bebido.

A verdade é que sempre fui um sujeito muito irritado; qualquer palito fora do lugar me tira do sério, qualquer poeira no chão me deixa ensandecido e as pessoas, principalmente quando aglomeradas em um micro espaço, me deixam maluco.

Meu pai era italiano e minha mãe alemã, eu, o resultado desta mistura genética só poderia ser uma bomba relógio, são as leis da natureza.

Enfim, queria lembrar o que bebi, para dosar o tamanho da ressaca. Na condição em que me encontrava não agüentaria esse festival de fogos de artifício por muito tempo; fui obrigado a me arrastar para um lugar tranqüilo, inabitado, inexistente.

O que tornava tudo mais ridículo é que eu fazia planos de fuga para qualquer lugar, mas não sabia onde estava.

Com o pouco de força que me sobrou consegui me erguer, apoiando-me a todo instante nas paredes úmidas pela chuva, tentando com todas minhas forças manter o equilíbrio e não cair nas poças enormes que há pouco me serviram de colchão.

De pé, arrastei minha carcaça até uma avenida qualquer, me joguei dentro do taxi, disse para me deixar em qualquer lugar, que não consigo lembrar. Embora o motorista dirigisse tranquilamente e não tirasse os olhos do espelho, não quis conversar; não consigo lembrar do rosto do homem que muito calmamente me conduziu para um destino incerto, me preocupei.

A cortina formada pela chuva impedia que eu visse a rua, as pessoas, para onde ia; o ar quente de dentro do veículo embaçava as janelas não facilitando minha visão.

Lembro que me irritei com a demora para se chegar a algum lugar, quando ameacei vociferar algo para o motorista, este pareceu perceber meu intuito e se antecipou:

- O senhor parece estar cansado, porque não descansa um pouco?

Neste instante minha cabeça passou a doer; tudo começou a girar, parecia que os fogos de artifício explodiam impiedosos ao meu lado, tal era o volume das explosões.

Gostaria de poder precisar se neste foi neste exato instante que o carro parou, se havia pessoas na rua; por mais que tentasse evitar, desmaiei.

Acordei em meu apartamento, largado em minha cama com a mesma roupa, que ainda estava ensopada, sem saber como havia parado lá. O barulho da explosão dos fogos de artifício foram substituídos por choros estridentes, incontroláveis. Os efeitos da bebida já haviam cessado, estranhamente ainda estava atordoado, mas me dirigi à sala de estar, vi meus familiares e amigos reunidos.

Minha irmã chorava, meus primos, amigos e amigas se abraçando, se consolando. Estavam todos vestidos de preto. Eles não pareciam me notar. Não sei como os identifiquei, parecia que não eram os vidros do taxi que estavam embaçados pelo ar quente, mas sim meus olhos. Assim, instintivamente os defini como sendo minha irmã, primos e amigos.

Por um instante achei que havia morrido, entretanto, uma de minhas tias se dirigiu a mim, um tanto pálida e disse: “Nós sentimos muito, meu querido. Sentimos tanto!” abraçou-me com tamanha força que achei que quebraria ao meio.

Abracei-a, creio que notaram que não fazia idéia do que estava se passando e minha irmã se aproximou, tocou meu braço com sua mão pálida e disse: “Marcos, o Marcolito, faleceu.” Atou-se a chorar incontrolavelmente, e com muito esforço prosseguiu: “Foi um acidente de carro, horrível”. Ouvi a notícia, que me atingiu como um soco no estômago, minhas pernas começaram a tremer e desta vez sequer tentei me conter; desfaleci.

Marcos era meu irmão mais velho. Foi ele quem me ensinou a soltar pipa, olhar debaixo das saias das meninas, fumar, jogar bola. Foi meu pai e irmão. O fato de ter falecido desta súbita maneira, foi um choque muito grande.

O que mais me indignou fora o fato de sequer tê-lo visto, sequer ter reconhecido. Não fui capaz de ajudar minha irmã, minha família; certamente estava bêbado, estressado ou trabalhando demais. Jamais me perdoarei por isto.

Quando dei por mim novamente, levantei, peguei minha jaqueta, as chaves em cima da cômoda, passei como uma flecha pela sala e saí sem que desse tempo que alguém dissesse uma palavra.

Bebi algumas coisas em algum bar. Acordei em uma esquina desconhecida e comecei a caminhar.

Enquanto dançava pelas calçadas procurando qualquer lugar para ir, ouvi alguém gritando meu nome, estava tão tonto que o único lugar para que consegui olhar foi para cima, dando a impressão de que me chamavam do céu. Era Jorge.

“Meu Deus, o que aconteceu com você?” Como se não tivesse me dirigido a palavra, sorri e o abracei, mais para evitar uma queda direta ao chão do que por felicidade.

Fui imediatamente arremessado para trás, antes que caísse completamente desequilibrado no chão Jorge vociferou: “Você tem três dias para sair do apartamento. Não agüento mais. Três dias!” Achei que para chancelar a intimação sumária de meu despejo ele cuspiria em mim. Não tive esse prazer.

Pensei comigo: “E agora? Para onde vou? Faz tanto tempo assim que não pago meu aluguel?” Sinceramente, não lembro se cheguei a pagá-lo uma vez sequer.

Fui tomado pelo pânico.

Se tivesse algum centavo no bolso iria ao bar beber algo, mas fui obrigado a sentir a angústia e o medo corroendo meu estômago. Tremia.

O que seria de mim? Em minha cabeça restava apenas uma leve imagem do que havia se sucedido em minha sala de estar, optei por não me esforçar em lembrar tanto de meus dias passados.

Contudo, por mais esforçado que fosse, não consegui esquecer aquela mensagem deixada em minha secretária eletrônica; a voz dela um pouco trêmula, porém sem dúvida estava certa do que dizia. Não me suportava mais. Não agüentava meus surtos de irritação, impaciência, não me agüentava mais. Nem eu me agüento mais, o que poderia fazer.

“Me desculpa, não posso mais. Não me procure mais”. Foi assim que a mensagem terminou. Como que por instinto arranquei a fita da secretária com toda violência que me é natural, arremessei inúmeras vezes a fita na parede; ficou intacta, não quebrava, não estraçalhava, não sumia.

Este é o último instante que tenho claro em minha mente, está tatuado e tenho certeza que não apagará tão cedo.

Já é noite. Não sei que dia do ano novo estou vivendo; acho que quero ir para casa.

Estava a caminho de casa, não via a hora de deitar em minha cama e dormir um dia inteiro, uma semana, um mês. Quanto mais eu andava, menos conhecidos os lugares se demonstravam. Tenho impressão que a rua aparecia na medida em que eu andava, como se não houvesse nada a minha frente e a cada passo que eu desse uma casa, um prédio, uma loja, um bar, surgisse do nada.

Comecei a tremer incontrolavelmente, parei no meio da rua, que estava deserta, tentando ver o que havia há 4 passos à minha frente. Não estava bêbado, não estava zonzo. Juro que não havia nada.

Quando finalmente tomei coragem para seguir em frente me convencendo que tudo era fruto de minha imaginação, ouvi um assovio distante, como se fosse um trem se aproximando. Pude ouvir claramente o barulho deste trem; o assovio se repetiu.

Apertei os olhos, tentando ver algo ao meu redor, não consegui distinguir se era de minha cabeça que vinha o barulho estridente, o maldito assovio. Quando olhei para frente não tive tempo de respirar, de piscar, de mover um fio de cabelo. Era o trem.


Um comentário:

Unknown disse...

Apesar de preferir um final diferente, compreendo o que foi dado!
Muito inteligente e criativo!


Mariana
(Pequena)