sábado, 29 de dezembro de 2007

Reprise - Parte 2 de 3

2ª PARTE

Quando acordei, fogos de artifício iluminavam o céu e transformavam a noite em dia. Será que era ano novo? Eu acho que bebi demais. Como toda noite de ano novo em São Paulo, chovia, e muito; não me incomodei. Este ano não podia ver os fogos de artifício, por alguma razão sentia que havia algo errado, me incomodei.

Não me lembro de ter bebido nada, pior, não me recordo de nada que tenha ocorrido no ano que se passou; sinto como se um ano inteiro tivesse passado sem q eu o tivesse vivido.

Porém, o que eu sou permanece imutável e a irritação irradiava de cada entranha do meu corpo por estar onde estava sem saber de nada. A triste verdade é que sou e fui durante toda minha vida excessivamente irascível; qualquer coisa fora do lugar me deixa louco; as pessoas me tiram do sério.

Não sei se é culpa da genética ou exclusivamente minha, mas sou uma bomba relógio.

Gostaria de lembrar se bebi, para ao menos saber se ficarei de ressaca. Sei que não queria ver o festival de fogos de artifício por muito tempo, meu estado me irritava; pensei em me arrastar para um lugar tranqüilo, inabitado, sem saber se de fato há tal lugar.

O que tornava tudo mais ridículo é que fazia planos de fuga mas não fazia questão de saber onde estava. Sei que para seguir em frente era obrigado a dar meia volta e andar para trás, estava num beco. Era um daqueles becos utilizados como depósitos de lixo e entulho. A chuva e o clima frio contribuíam para o odor proliferar e impregnar minhas roupas, meu cabelo, meu corpo.

Me ergui, fraco e zonzo, sentindo que já havia passado por tudo isso antes. Me apoiei nas paredes úmidas pela chuva, e andei com passos telegrafados, como se já tivesse andado daquela forma antes.

Instintivamente já sabendo o caminho que deveria tomar, me arrastei até uma avenida qualquer, me joguei dentro de um taxi assaz familiar. Senti que já conhecia o taxista de algum lugar; esperei um instante para ver se este diria algo, mas permaneceu silente, aguardando que dissesse para onde queria ir. Pedi para me deixar em algum lugar que não consigo lembrar. O motorista dirigia tranquilamente e não tirava os olhos do espelho; sabendo que a chuva formava uma cortina que impossibilitava a vista do lado de fora, assim nem tentei ver o que havia do outro lado da janela. Embora tivesse passado minha mão nos vidros para tentar impedir que embassassem, sem sucesso: meu destino permanecia uma incógnita.

Como de costume, me irritei com a situação. Sem pestanejar disse ao motorista num tom elevado de voz: para aonde está me levando? Por que a demora?

Contudo, agindo como se não tivesse dito nada retrucou:

- O senhor parece estar cansado, porque não descansa um pouco?

Assim que terminou a frase fui acometido por uma dor de cabeça incrível, senti que não era a primeira vez que passava por isso e antes que pudesse formular qualquer frase, desmaiei.

Acordei em meu apartamento, largado em minha cama com a mesma roupa, estava ensopado. Não fazia idéia como havia parado lá. O barulho da explosão dos fogos de artifício foi substituído por choros estridentes, incontroláveis. Não me lembro de ter bebido, mas a dor de cabeça que sentia indicava que fora algo muito forte. Dirigi-me à sala de estar, vi meus familiares e amigos reunidos.

Minha irmã chorava, meus primos, tias, amigos e amigas se abraçavam. Esta cena me é familiar. Estavam todos vestidos de preto, senti que não me notavam. Não conseguia os identificar, por mais que tentasse não conseguia distinguir os rostos, os detalhes das roupas que usavam, pareciam vultos.

Meu coração disparou; será que estou morto? Quando, já muito irritado, pensei em gritar algo, uma de minhas tias se dirigiu a mim, um tanto pálida e disse: “Nós sentimos muito, meu querido. Sentimos tanto!” abraçou-me com tamanha força que achei que quebraria ao meio.

Assim que minha tia me largou, me veio à mente a cena de minha irmã se dirigindo atônita em minha direção, chorando, dizendo que meu irmão morreu. Antes que saísse do transe momentâneo que havia naufragado, minha irmã se aproximou, tocou meu braço com sua mão pálida e disse: “Marcos, o Marcolito, faleceu”.

Pôs-se a chorar incontrolavelmente, e com muito esforço prosseguiu: “Foi um acidente de carro, horrível”, me abraçou.

Ouvi a notícia, que me atingiu como um soco no estômago, por alguma razão já sabia que ela diria isso. Previa seus movimentos, suas palavras, tudo.

Pus-me a chorar. Me desesperei e me separei da minha irmã de uma forma violenta; esta quase caiu no chão, tamanha força que usei para me soltar de seus braços. Onde eu estava quando isto aconteceu? Onde eu estava? Por que não fui chamado para reconhecer o corpo? Provavelmente estava bêbado, trabalhando ou ocupado demais com qualquer inutilidade. E agora?

Marcos era meu irmão e pai e agora se foi.

Esmurrei a parede, corri para o meu quarto, peguei o casaco, as chaves e saí como uma flecha de casa.

Segui um caminho completamente desconhecido. Encontrei um bar muito familiar, entrei, pedi alguma bebida. Todos os movimentos foram por mim reconhecidos. Os olhares trocados, os bêbados estavam jogados exatamente onde eu imaginei que estariam; por sinal, parecia que estavam jogados, imóveis, no mesmo lugar há anos.

Depois de ter me embebedado, segui cambaleando por alguma rua que não conheço, ouvi alguém gritando meu nome, pensei: “O que este Jorge quer de mim?” Me flagrei imaginando como sabia que era de fato Jorge que me chamava. Temi olhar para trás e quando olhei, lá estava ele, Jorge.

“Meu Deus, o que aconteceu com você? Você está um caco!” Não consegui assimilar o que ele me disse, a bebida fazia tamanho efeito em mim que me vi em queda livre em direção ao corpo de Jorge, que num único violento arremessou meu corpo para trás.

Desatei a rir. Sabia exatamente o que iria acontecer, e com um sorriso enorme no rosto caí no chão. Jorge me olhou e disse num tom reprovador: “O que diabos você está pensando? Lhe dou mais três dias para sair do apartamento. Nem um a mais nem um a menos.”

Enquanto ele se afastava perguntei: “Não vai cuspir na minha cara e chancelar a intimação de despejo?” Não conseguia conter o riso.

De repente, um temor incontido, uma tremedeira tomara conta de mim. Me enfureci, fiquei completamente descontrolado, tentei levantar a todo custo, mas a bebida atuava com tamanha força em mim que para me levantar, fui obrigado a ficar de joelhos e me apoiar num carro que estava estacionado. “Meu Deus! E agora? Para onde vou? Nunca paguei um dia sequer de aluguel!” Chorei de pânico.

O pior de tudo é que não tinha dinheiro, minha vida parou há alguns dias, achei que esqueceria este dia, mas não, ficou tatuado na minha alma, escrito em cada canto do meu quarto, me consumiu. Não conseguia parar de tremer e chorar.

Faria de tudo para não me lembrar daquele dia, mas é a única coisa que consigo lembrar claramente. O momento que entrei pela porta, joguei o paletó no sofá; vi que tinha uma mensagem em minha secretária eletrônica.

Lembro-me da voz dela; suave, doce, neste momento, especialmente chorosa: Não agüentava meus surtos de irritação, impaciência, não me agüentava mais. Não me queria mais.

“Me desculpa, não posso mais. Não me procure mais”. Foi assim que a mensagem terminou. Como que por instinto arranquei a fita da secretária com toda violência que me é natural, arremessei inúmeras vezes a fita na parede; ficou intacta, não quebrava, não estraçalhava, não sumia.

Completamente inebriado pela cólera percebi que se a fita não explodia, não destruía, concluí que se alguém deveria sumir, esse alguém seria eu.

Este é o último instante que tenho claro em minha mente, está tatuado e tenho certeza que não apagará tão cedo.

Já é noite. Não sei que dia do ano novo estou vivendo; acho que quero ir para casa, mas que casa?

Estava a caminho, não via a hora de deitar em minha cama e dormir um dia inteiro, uma semana, um mês. Quanto mais eu andava, menos conhecidos os lugares se demonstravam. Tenho impressão que a rua aparecia na medida em que eu andava, como se não houvesse nada a minha frente e a cada passo que eu desse uma casa, um prédio, uma loja, um bar, surgisse do nada.

Comecei a tremer incontrolavelmente, parei no meio da rua, que estava deserta, tentando ver o que havia há 4 passos à minha frente. Não estava bêbado, não estava zonzo. Juro que não havia nada.

Quando finalmente tomei coragem para seguir em frente, me convencendo que tudo era fruto de minha imaginação, ouvi um assovio distante, como se fosse um trem se aproximando. Pude ouvir claramente o barulho deste trem; o assovio se repetiu.

Apertei os olhos, tentando ver algo ao meu redor, não consegui distinguir se era de minha cabeça que vinha o barulho estridente, o maldito assovio. Quando olhei para frente não tive tempo de respirar, de piscar, de mover um fio de cabelo. Era o trem.

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