segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

O Último Ato (Cap. 2 - Parte 2)

Ao passar em frente a entrada da casa vizinha reparei que um senhor de idade estava me observado apoiado ao portão. Quando cruzamos nossos olhares ele sorriu.

“É parente da Bianca?”.

“Não, eu sou o padrinho da Yuki, mais de consideração da família. Amigo do pai dela e da Bianca também.”, respondi me virando para ele.

“Nunca te vi antes por aqui.”, disse um pouco desconfiado.

“Estive fora por seis anos, voltei ontem e vim visitá-los.”.

“A sim.”, pensou por um momento. “Padrinho da Yuki...”, esfregou seu queixo com a mão direita mantendo o apoio no portão com a esquerda. “Gostaria de entrar? Eu gostaria de conversar um pouco com você.”.

Pensei por um momento antes de aceitar. Era um senhor velho e simpático, não vi mal em aceitar o convite, também não iria fazer nada nem hoje nem nos próximos dias. Confesso que estava curioso também, queria saber mais o que eu perdi em minha ausência.

“Uma garotinha adorável.”, disse ao colocar bolachas e café na mesa de centro da sala, se sentou em uma poltrona em frente do sofá em que eu havia me acomodado. “Yuki, eu digo. Está sempre sorrindo, feliz. Cumprimenta a todos do bairro e ajuda com as compras. Muito adorável. Mas...”.

“Mas?”.

“A mãe dela, Bianca. Muito triste sua historia, soubemos pelos seus familiares.”, tomou um gole do café. “Íamos visitar Yuki algumas vezes, mas sempre recebíamos a noticia da Bianca que não conhecia nenhuma Yuki, ou tinha alguma filha.”.

“Vocês não fizeram nada a respeito?”.

“Senhor...”, olhando para mim esperando que eu me apresentasse.

“A sim. Me desculpe. Meu nome é Shinji.”, me levantei e estendi a mão.

“Marcio.” Nos cumprimentamos, ao se sentar novamente continuou. “Como sabe todos que moram nesse bairro são velhos. Ninguém tinha muito contato com a família da Yuki, víamos as festas há muito tempo, conversávamos um pouco com os parentes dela, mas só quando aquele rapaz - Kenji não é esse o nome do pai? – parou de aparecer no bairro que Yuki passou a ficar mais tempo fora de casa, caminhava pelo bairro e parava na praça próximo ao mercado, então muitos do bairro iam para lá aproveitar os dias de sol e acabamos a conhecendo melhor. Apesar de tudo ela não fala nada a respeito da mãe, só que está muito doente.

“Ao passar dos dias notamos que ela voltava sozinha da escola,” continuou. “e é uma longa caminhada de lá para cá, tentei convencê-la voltar de ônibus, mas ela disse que preferia a caminhada, assim podia pensar no que fazer para o almoço. Até alguns anos atrás eu acompanhava todo o percurso com ela, mas como pode ver já estou velho.”, e olhou para a bengala ao lado de sua poltrona como se confirmasse o que disse. “Mesmo assim todos do bairro se apegaram a ela, e depois da mãe dela falar aquelas coisas estranhas de não conhecer a própria filha, ficamos muito preocupados.

“Os parentes vinham visitar ela constantemente, e descobrimos por eles que após a partida do marido ela entrou em uma profunda depressão, sua saúde fraca não ajudou também. Além de tudo ela esqueceu a existência da filha, apesar da Yuki fazer toda as tarefas de casa, ela simplesmente ignora a presença da filha.”.

“E a família dela não tentou fazer nada?”, perguntei tomando o resto do café que esfriava, peguei uma bolacha, estava muito bom.

“Diziam estar cuidando das coisas, que era melhor deixar ela sozinha. Depois da noticia da morte do marido os médicos disseram que se tirassem a filha dela, poderia ser pior, ela poderia se matar.”, pegou uma bolacha também, mordiscou um pedaço e ficou segurando o resto. “A família ficou sem saída, não queriam enviar a Bianca para um asilo, mesmo porque sabiam o quanto ela amava Kenji e a filha, por isso pensaram que era só uma questão de tempo. Mas conforme os anos passaram, menos e menos víamos os familiares a visitarem, até que um dia simplesmente pararam, esqueceram a existência dela e da Yuki.”.

Não pareciam ser os mesmos familiares dos quais me lembrava. Estavam sempre tão unidos, seriam capazes de simplesmente esquecer Yuki e a Bianca. Mas todos temos problemas, talvez conforme o tempo passou e as dificuldades aumentaram para todos eles foram deixando elas de lado, pensando que o tempo curaria a situação de Bianca. Estavam errados, e eu ainda mais, estive errado antes mesmo deles, errei ao sair do país sem tentar mais, ou pelo menos por perder o contato com eles.

“Não parece que é algo que a família dela fizesse. Esquecer elas dessa maneira, quero dizer.”

“E não foi.”. Comeu o resto da bolacha. “Uma hora nos cansamos, senhor Shinji. Todos tem seu limite, o da família dela foi longo. Como ultimo recurso queriam deixar Bianca em um asilo, a mãe impediu isso, houve uma grande gritaria, Yuki chorava e a Bianca ficava quieta como se estivesse em um transe, em um outro mundo, entende o que eu digo? A mãe até continuou a vir por mais tempo, vinha todos os finais de semana, passava um tempo com a filha e depois ia para o parque com a neta. Essas visitas durante os fins de semana mudaram para uma vez ao mês, depois uma vez a cada dois meses, até que parou de visitar, acredito que ela também já estivesse muito velha para fazer as longas visitas.”

“Entendo, então...”, não conseguia me focar em nada, ainda estava pensando nas coisas que ele havia me contado, tentando reconstruir aquelas lembranças através das quais me narrou. Ele esperou que eu continuasse, mas não havia mais nada para falar. Me levantei e preparei para sair.

“Não é culpa dela senhor Shinji. Não culpe Bianca.”, disse se levantando, indo abrir a porta para mim. “Ela devia amar muito o Kenji, pelas historias que ouvi, eram como almas gêmeas. Talvez eles se completassem, cada um com uma asa, e quando ele se foi, ela perdeu a sua outra asa e com isso o seu rumo neste mundo. Desculpe senhor Shinji. Apenas um devaneio de um velho, não de atenção.”

“Não se preocupe.”, passando pelo portão olhei para a rua, já era fim de tarde. Vi a casa de Bianca mais uma vez. “A única pessoa que eu culpo, sou eu mesmo por ter permitido que tal coisa acontecesse.”.

Antes de me despedir do Marcio no dia anterior perguntei onde Yuki estudava. Ele me deu o endereço e agora estava em frente a escola.

Estava esperando pelo sinal do término das aulas do dia, haviam muitos pais em volta e, assim que o portão abriu, muitas crianças saíram, dificultando a minha visão, foi então que me lembrei: não sabia como ela estaria agora com doze anos de idade. Isso me assustou, não pensei nisso e agora não sabia o que fazer, tinha que observar todas aquelas dezenas de crianças saindo e imaginar qual seria a Yuki. Me aproximei junto aos pais, e observei da forma mais atenta possível, a única certeza que tinha era de que ela sairia de lá andando e ninguém estaria esperando por ela.

“Tioshi?”, ouço a voz de uma menina por entre a multidão de crianças. “Tioshi?!”

Ela sai da multidão e vem correndo em minha direção, quando para na minha frente fica me olhando com os olhos bem abertos e um sorriso largo no rosto.

“Yuki?”

“Tioshi! É você! Eu sabia!”, pulou pra me abraçar, me curvei um pouco devido a nossa diferença de altura, ela estava completamente diferente de como a lembrava, seis anos realmente foi bastante tempo.

“Yuki! Como você cresceu menina!”, disse após solta-lá do abraço.

“Hihihi. O que você está fazendo aqui?”

“Fiquei sabendo que você estudava aqui, e como estava andando na região resolvi ver se te encontrava.”, respondi enquanto caminhávamos para fora da multidão de crianças e pais que se encontravam para voltar para casa. “Mas acho que foi o contrario, né? Como você sabia que era eu?”.

“Sabe que eu não sei?”, respondeu ao passar pelo ultimo grupo de mães. “Tioshi é Tioshi, eu olhei para você e a primeira coisa que me veio à cabeça foi você! Tioshi. Eu não me lembrava mais do seu rosto, mas no fundo eu senti que era você!”.

“Ainda não perdeu a mania de me chamar assim?”

“Desculpa.”, ficou um pouco triste, parecia que ela sentia ter me ofendido e estava arrependida, seus olhos baixaram para a rua e fez silêncio.

“Para que as desculpas? Não me importo mais que você me chame de Tioshi, pra falar a verdade até fiquei muito feliz por ter ouvido você me chamar assim de novo.”.

“Sério?!”, ficou toda feliz.

“Sim.”, ela começou a andar e eu acompanhei seu ritmo.

“Tioshi vai me acompanhar?”.

“É claro, faz tempo que não conversamos. Vamos aproveitar a caminhada para falar um pouco.”.

“Eu tenho que passar no mercado antes de ir para casa, Tioshi não se importa?”.

“Claro que não!”.

“Onde você esteve todo esse tempo, Tioshi?”, perguntou enquanto caminhávamos em direção ao mercado, estava sendo guiado por ela.

“Trabalhando no exterior.”

Estava feliz ao ver que ela estava com saúde e animada apesar da situação. Mas no fundo, sabia que estava triste e que guardava toda essa tristeza para si, para não preocupar os outros. Ela havia se tornado uma menina muito forte, Kenji, assim como eu, estaria muito orgulhoso dela se estivesse vivo. Kenji... Ainda não conseguia aceitar a situação, a morte dele, o estado de Bianca e a tristeza e bravura de Yuki. Nenhuma criança deveria passar por algo assim.

O mercado era no bairro onde a casa dela ficava, era um lugar pequeno, típico mercadinho de bairro residencial. Ela sabia exatamente onde procurar o que queria, provavelmente, pensei, por fazer compras regularmente lá.

“Desculpa, Tioshi.”, falou parando em frente de onde ficavam os legumes. “Eu não posso convidar você para almoçar em casa...”.

“Ora, não se preocupe com isso, eu vou almoçar em casa hoje.”.

Fizemos silêncio até ela terminar de pegar as coisas que precisava e passar pelo caixa do mercado, até que olhou para mim enquanto guardava as compras na sacola.

“Prometo para Tioshi que vou fazer um almoço muito gostoso qualquer dia. Eu sou boa cozinheira, sabe?”

Parei por um momento, com a alface em uma mão e sacola na outra. “Tenho certeza que sim.”, e quando a guardei na sacola continuei: “Hum! Eu vou aguardar ansioso por isso então.”.

“Ok! É uma promessa, então!”. Saímos com as sacolas do mercado.

Nos despedimos na frente da casa dela. Ela não me convidou para entrar, também não insisti para isso. De certa forma foi bom ter visitado Bianca antes, se não o tivesse feito, provavelmente iria pedir para entrar e vê-la, com isso as coisas poderiam se agravar, principalmente para Yuki que estava fazendo força para não me contar nada talvez para não me preocupar com ela.

“Amanhã eu vou buscar você de novo na escola, tudo bem?”.

“Não quero atrapalhar, Tioshi. Por favor, não precisa. Eu já estou acostumada.”, disse ao entrar pelo portão.

“Não vai me atrapalhar, eu estou de folga...”, cocei a cabeça meio sem jeito e dei uma risada. “Na realidade estou de férias e não tenho nada para fazer, é serio. Amanhã eu venho te pegar, me espera na entrada da escola, ok?”.

Yuki parou por um momento, pensou e pensou, mas não conseguiu esconder a alegria. Tentou fazer uma cara séria, mas não conseguiu. “Se Tioshi diz que não vai atrapalhar então tudo bem.”.

“Até amanhã então, Yuki.”.


--Fim do capitulo 2.

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