sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

O Último Ato (Cap. 3)

3 – Uma menina má.

No dia seguinte e nos próximos passei a buscá-la na escola, caminhávamos durante 45 minutos, ela me contava como havia sido o seu dia, o que iria fazer para o almoço enquanto eu contava sobre as coisas de quando ainda era pequena, como era o meu trabalho no exterior e também como era viver em Londres. Curioso, mas não me lembrava de como havia sido a minha estadia em Londres, parecia estar em uma outra época, distante da qual eu estava vivendo.

Yuki, como Marcio havia me contado, nunca comentava nada sobre Bianca nem Kenji, parecia evitar qualquer assunto que se relacionasse com eles. Eu também nunca forcei ela a falar nada a respeito, estava bom daquela maneira, afinal de contas, tinha todo o tempo do mundo. Pelo menos foi o que pensei.

Nunca pedia para entrar em sua casa, nem ela me convidava. Não me importava com isso, pois mesmo se me convidasse, não saberia o que falar ou fazer e também não queria mais ficar naquela casa, ainda não me sentia muito confortável com aquele ambiente tão melancólico que contrastava com as minhas lembranças felizes que tive.

Sexta feira chegou, perguntei a ela se não queria almoçar comigo, pois ficar cozinhando todos os dias deveria dar trabalho e queria passar um pouco mais de tempo com ela.

“Desculpe Tioshi.”, respondeu ela. Estávamos na saída da escola. “Mas eu preciso cozinhar para mamãe também. Ela está muito doente, sabe? Então não consegue fazer as tarefas da casa, por isso eu faço pra ajudar ela.”.

Aquela foi a primeira vez em dias que ouvi ela falar de Bianca, assim como a chamar de “mamãe”, fiquei surpreendido com a mudança de animo dela. Quando me viu ao sair da escola estava feliz, mas quando perguntei sobre almoçarmos fora, toda a tristeza pareceu envolver ela. Devia ser muito difícil mencionar a mãe de forma tão livre assim, pensei.

“Se eu não faço nada para mamãe comer, ela simplesmente fica sem comer nada, sabe? Então eu não quero que isso aconteça de novo.”

“De novo?” perguntei.

“Sim...”, sua voz ficou mais fraca, não sabia se deveria ou não falar, depois de um tempo ela respirou fundo e parou de andar, ainda olhando para o chão sem se virar. “Eu te explico depois, Tioshi.”.

Não exigi mais explicação, aquilo já era um avanço bem grande.

“Tioshi?”, perguntou ao chegarmos à entrada da casa dela.

“Sim?”, passando as sacolas das compras pra ela.

“Amanhã eu vou cumprir minha promessa, ok? Vou até a sua casa fazer um almoço bem gostoso.”.

“Hã?”.

“Eu só preciso saber onde você mora, eu consigo chegar lá, não se preocupe.”, disse sorrindo por entre o portão aberto, nenhum sinal de Bianca, nem nas janelas, nem na porta da casa, mas sentia que de alguma forma, ela estava acordada naquele lugar triste, cheio de memórias felizes que faziam a vida dela ainda mais difícil de se viver.

“Eu venho pegar você, naquela praçinha sabe? Isso se estiver tudo bem pra você, eu vou ter que sair de manhãzinha mesmo, então não vai ser problema dar uma passada aqui na volta.”.

“Ok, onze horas está bom para Tioshi?”.

“Claro, onze horas estarei na praçinha para te pegar.”.

“Hum!”, balançando a cabeça em afirmação. Com um sorriso de criança no rosto, ela fechou o portão e correu com as compras para dentro de casa.

O cheiro de comida caseira que não sentia, o que pareciam ser, há séculos, se espalhou pela casa onde meus pais moravam. Estava na cozinha sentado fumando um cigarro e lendo um livro que havia comprado durante a manhã, precisava ler algo por isso resolvi sair sábado logo cedo para comprar um e também para comprar uma outra coisa mais importante. Yuki cantarolava uma canção que eu não conhecia enquanto picava alguns legumes, me perguntei se ela ficava tão feliz assim a ponto de cantarolar enquanto cozinhava na casa dela com uma mãe que havia esquecido da sua existência.

“Está muito bom!”, e realmente estava, talvez pelo fato de fazer anos que não comia nada caseiro. Fiquei impressionado com a habilidade de cozinhar da Yuki. “Muito bom mesmo! É incrível! Você é uma cozinheira muito boa, Yuki.”.

“Tioshi acha mesmo?!”, soltou uma risadinha contente. “No começo eu queimava tudo, mas aprendi com o tempo. Agora eu posso fazer qualquer receita que eu ver.”.

“Isso é bom, muito bom. Tioshi só comia comida congelada e macarrão instantâneo, nunca fui bom cozinheiro, sabe.”, dando mais uma garfada na comida.

Comemos em silêncio. Quando terminei retirei os pratos e coloquei sorvete em dois potes, era de flocos, ela costumava gostar desse sabor. Ao sentar-me vi ela colocar na boca um pedaço grande, não devia tomar muito sorvete, pensei.

“Me diga, Yuki?”, perguntei para ela, ainda sem tocar no meu pote com o sorvete.

“Sim? Tioshi?”.

“Amanhã é o seu aniversário, não? O que você pretende fazer? Uma festinha ou algo assim?”.

“Hum...”, pensou por um momento. “Eu não faço festas no meu aniversário, geralmente eu faço um bolo pequeno e ganho alguns doces do dono do mercado perto de casa, aquele que agente sempre vai. Não faço mais nada.”

Fiquei imaginando a cena dela na casa, fazendo um bolo e comendo sozinha para celebrar o seu aniversário. Senti uma pontada em meu coração com aquele pensamento, e estremeci. Nem mesmo eu teria tanta força quanto ela tem para continuar vivendo assim, teria enlouquecido antes.

“E a sua mãe?”, perguntei. “Vocês não comemoram juntas?”, não custava nada tentar essa pergunta, queria ver a reação dela, no fundo, acredito, eu ainda não tinha admitido completamente aquela situação.

“A mamãe...”, disse sem tirar os olhos da última bola de sorvete do pote que eu havia colocado pra ela, estava derretendo com as mãos dela o segurando. Nunca ouve continuação para aquele pensamento, não conseguia imaginar também o que ela diria, nem mesmo imaginar a tristeza que havia se acumulado naquele coraçãozinho tão pequeno.

“De qualquer maneira.”, falei olhando para ela, quebrando o longo silencio que tinha se posto entre nós. “Porque você não vem comigo à tarde depois do almoço? Podemos sair para comemorar agora que estou aqui. Podemos ir para o parque, depois para o cinema, ou onde você quiser. É domingo mesmo.”, fiquei animado com a minha proposta, queria dar o presente para ela que comprei durante a manhã também, mas acima de tudo, queria vê-la feliz, não aquela felicidade forçada que impunha para ela mesma, mas uma genuína, sem preocupações. No entanto a reação dela foi tudo menos alegria, ainda estava triste olhando para o pote.

“Por quê?”, perguntou ela começando a soluçar.

Falei algo errado?, pensei. “Como assim por quê?”.

“Por que você está fazendo isso?”, as lágrimas caiam, ainda não olhava para mim. “Por que você está fazendo isso por mim? Por que perde o seu tempo, Tioshi?”.

“Como assim? Eu não to entendendo. Como assim perdendo meu tempo? É o seu aniversário, eu sou o seu tio afinal de contas, então como assim “Por quê?”. Você não quer ir? Se for é só falar Yuki. Não tem problema nenhum.”, estava espantado pela reação tão inesperada dela, mas consegui formar um sorriso. A verdade é que queria passar mais tempo com ela, talvez mais por mim do que por ela, queria me redimir com Kenji, sentia essa necessidade.

“Eu sou uma menina má...”, disse ela em meio aos seus soluços e lágrimas. “Papai foi embora por minha causa, porque não ajudava a mamãe. E agora eu posso ajudar a mamãe, Tioshi! Eu to ajudando a mamãe...”, colocou a cabeça entre as mãos. “Não é? Eu to ajudando a mamãe! Então porque o papai não volta? Porque a mamãe não me reconhece de novo?!”.

Não consegui me mover, as pernas fraquejaram, me senti leve e pesado ao mesmo tempo, a cabeça girava, parecia a mesma coisa que senti quando recebi a noticia da Bianca de que Kenji havia morrido. Controlei a respiração, sentei-me ao lado dela e a abracei contra o peito. Sentia as lágrimas morna molhando a minha camisa, passava a mão pelo seu cabelo, encostei o queixo em sua cabeça e deixei que as minhas lágrimas escorressem também.

No dia seguinte após o almoço visitamos vários lugares, primeiro levei ela ao parque de diversão, um ônibus fretado saia perto da casa dela o que facilitou as coisas, quando voltamos já era fim de tarde, vimos um filme no cinema, que eu dormi e por isso ela deu risada, durante a janta ela me contou como era o filme, incrivelmente ele parecia ser de ação o que me surpreendeu por eu ter dormido, mas pelo menos deixou um assunto bem amplo que durou a janta inteira e, mais importante, realmente senti que Yuki estava se divertindo. Contava alegre sobre os feitos do herói da historia, de como ele resgatava a mulher que amava e se casavam no final e os bandidos acabaram derrotados.

Voltamos em um ônibus vazio do centro, ficamos sentados no fundo, ela estava abraçada em meu braço direito, com a cabeça encostada no meu ombro.

“Queria que esse dia nunca acabasse.”, murmurou enquanto apertava mais firme seus braços em volta do meu. “Queria que papai estivesse aqui.”, e adormeceu.

Segunda feira esperei em frente ao portão da escola como de costume. Após todos partirem, não vi sinal de Yuki, pensei que tivesse faltado. Quando comecei a andar em direção a casa dela, fui parado por uma mulher que saia dos portões da escola.

“Você está esperando por alguém?”, perguntou ela quando se aproximou, seu olhar era simpático e tranqüilo.

“Sim, mas acho que ela faltou hoje.”.

“E quem seria ela?”.

“Yuki. Yuki Kanekawa.”.

Ela olhou um pouco assusta para mim ao ouvir o nome, mas logo voltou ao seu olhar simpático. “Desculpe, mas o senhor é?”.

“Shinji. Shinji Ichinose. Sou o padrinho dela.”.

“Shinji.”, pensou por um momento. “Ah! Ela me falou sobre você. Você deve ser muito especial para ela. Yuki esta sempre empolgada contando a seu respeito, ela até me contou uma de suas historias.”. Estendeu a mão para me cumprimentar. “Camila. Sou a diretora da escola. Por favor, vamos a minha sala.”.

Após nos cumprimentar fui a sua pequena sala, com muitos armários velhos de arquivos, uma estante de livros dos quais nunca ouvi falar. Sentei-me em uma cadeira em frente a mesa, do lado oposto em que ela estava sentada.

“Senhor Shinji.”.

“Só Shinji está bom.”.

“Shinji.”, fez uma pausa, parecia preocupada e por isso acabei ficando também. “Você não soube?”.

“Do que?”, o coração bateu forte, coisa boa não podia ser. Mesmo assim não queria acreditar, o dia anterior foi tão bom que, ao terminar, acreditava que as coisas iriam melhorar para Yuki.

“Bianca passou mal, foi parar no Hospital. Yuki ligou e me contou que ficaria com ela até se recuperar.”, parou por um instante e respirou fundo. “Sinto muito.”.

Realmente, foi uma ilusão acreditar que as coisas podiam melhorar. Pensamento positivo, Shinji. Você ainda tem tempo. Pensei. Tempo? Tempo para que? Por um momento uma lembrança voltou, mas tão rápido quanto veio, ela se foi. Estava esquecendo algo importante, só não podia me recordar do que.

“Em que hospital elas estão?”.


--Fim do capitulo 3

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