quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Neve de Ano Novo - Parte 2

-20:15

No meio do caminho entre a antena e a proteção da sacada vejo uma mulher do outro lado do parapeito da sacada, seus longos cabelos negros com mexas douradas balançavam selvagens contra o vento agressivo da cobertura, sua camisola de seda branca mexia-se acompanhando os cabelos, estava descalça e não usava mais nada. Era linda, parecia uma deusa, se não fosse pela bizarra circunstância em que nos encontrávamos ficaria excitado com aquela visão.

“Não!”, gritou novamente se agarrando ao parapeito e se afastando de mim.

Fiquei por um tempo parado, não sabia o que fazer ou como agir, parecia cena de cinema, mas, por mais irreal que aquela cena parecesse, não era um filme. Acendi um cigarro e me aproximei lentamente do parapeito e apoiei os meus braços, não podia olhar para baixo devido minha fobia de altura, se eu olhasse provavelmente o meu salgado e meu café iriam se juntar à garoa de quem estivesse passando lá em baixo.

“EU VOU PULAR! SE AFASTE!”

“E eu vou fumar”, respondi dando um longo trago, “Não poderia pular depois que eu acabar esse cigarro? Enquanto isso, nós podemos conversar”. Senti a bílis subir pela garganta, o que diabos eu estava fazendo? Parecia agir sob hipnose, não fazia idéia de minhas ações.

Ela pareceu se acalmar, fiquei à um metro de distância e com o parapeito entre eu e ela. Ficamos em silêncio por um longo tempo e meu cigarro estava quase acabando, tinha que falar algo, enrolar, só não sabia o que.

Foi ela, afinal, quem quebrou o silencio.

“O que você está fazendo aqui?”

“Como assim? Estou fumando, como pode ver...”

“Não é isso que quero dizer..”, disse encostando no parapeito e olhando 25 andares para baixo. “Você poderia estar fumando no seu apartamento, não precisaria estar aqui. O que quero dizer é: o que você esta fazendo aqui? O que o trouxe até aqui?”

“Hum”, refleti por um momento, de fato não sabia o porquê de estar ali naquele momento, nunca fumei na cobertura, mas por algum impulso neste dia resolvi ir até lá como em transe. “Se eu fumasse em casa eu não teria a mesma paisagem que eu tenho aqui, sem falar que eu não estaria conversando também.”

“Nesta paisagem de concretos? O que há de se apreciar aqui?”

“Não creio que o importante seja o que eu vejo, mas sim a paisagem que eu tenho em mente. Aqui relaxo mais, vejo todos esses prédios e imagino como seria se isso tudo fosse um grande e bonito jardim ensolarado”, disse pisando na bituca de cigarro, por um momento esqueci que era aquele cigarro que impedia ela de pular, mas, felizmente, estava enganado; ela estava mais tranqüila que antes.

“A imagem que eu tenho em mente não difere desta triste, acinzentada e solitária...”, disse ao olhar para o horizonte, o prédio era relativamente mais alto que os outros da região, então podia se ver muita coisa da cobertura. “Estou só...”

“Como está só? Eu estou aqui, não?”

“Não é isso, você não entenderia, ninguém entenderia”, disse olhando para mim e depois baixando a cabeça. Era claro que ela estava triste, qualquer um poderia perceber isso, não só pelo fato de ela estar lá para se suicidar, mas também como sua voz, tão doce e suave, estava tão depressiva que parecia chorar.

“Talvez eu entenda. Mesmo cercada de amigos, pelo menos que você considera amigos, se sente isolada, sozinha. Mesmo quando estão conversando, você se sente fora da conversa, como se estivesse acontecendo em um outro mundo, afastado e isolado de você”, fiz uma pausa para acender um outro cigarro, ela me olhava atentamente e eu apenas observava a paisagem tentando escolher as palavras para o que iria dizer em seguida. Após um longo trago continuei: “Parece que você não consegue se socializar, não é por falta de tentativas, pelo contrario, sempre tenta iniciar um assunto, mas acaba em algo da qual você desgosta, no entanto todos os outros parecem se interessar. Então cada vez mais você fica sozinha em seu canto, apenas ouvindo e observando, imaginando se algo a tiraria daquela situação desconfortável, para longe deles, mas percebe que isso não irá acontecer, eles estão se divertindo e você está chorando, ninguém percebe, nem mesmo você, mas sua alma sabe as lagrimas que derrama, o sentimento de vazio e solidão que se parece com um buraco que se forma de dentro para fora de seu peito.”

O silêncio cai entre nós, penso se dissera algo de errado, mas eram as palavras sinceras que eu tinha, pelo menos era assim para mim. Com uma mão ela segura no parapeito e com a outra segura sua camisola entre seus seios com força e então lagrimas escorrem pelo seu belo e pálido rosto.

“Machuca muito”, disse finalmente ainda de cabeça baixa evitando o olhar direto para mim. “Essa sensação de vazio, é como se todos me ferissem sem saber e mesmo se soubessem, sinto que não ligariam e apenas me ignorariam. Não quero mais me sentir assim!”

“Ninguém quer...”, respondi afastando o meu corpo do parapeito, mas mantendo minhas mãos nele, respirei fundo e continuei. “Mas se você pensar assim, pensar nas coisas negativas – veja eu sei como é fácil se lembrar dos momentos ruins e como é raro nós conseguirmos apreciar em lembranças os momentos felizes, pois os tristes sempre parecem se sobressair aos felizes – ninguém conseguiria viver, esses pensamentos negativos são o pior veneno da alma. Por isso não acho que você devia acabar com sua vida só por isso, você estaria apenas fugindo, não aprenderia nada e perderia a única coisa que você sempre terá de importante: a vida.”

“Não é só por isso que desejo me matar...”, disse olhando fixamente para mim, seus olhos vermelhos ainda derramavam lagrimas e soluçava vez por outra enquanto falava. “Havia um rapaz...”, sempre há, pensei, “eu amava muito ele, queria sempre ficar do seu lado e fazer tudo que me fosse capaz para agradá-lo, para ver seu sorriso e fazer com que se sentisse feliz, queria fazer da felicidade dele a minha”.

Então era por amor, confundi as coisas dela com as minhas próprias, me equivoquei e talvez tenha sido pior, em todo caso ela ainda não pulou, o que já era muito bom, dei a ultima tragada do segundo cigarro e novamente pisei nele logo ao lado do anterior, logo depois ela, de cabeça baixa, continuou: “Mas um dia ele me disse que eu era muito boazinha, muito inocente e que não conseguia me impor a nada. Disse que por isso me traiu e mesmo assim eu não pude fazer ficar brava com ele, e então ele decidiu partir com a amante”, então vejo ela fechar seus olhos, as lagrimas escorrerem e passa a sentir o vento e a garoa que ainda insistia em fazer. “Me diga, como alguém que tem os pensamentos que eu tenho pode ser boazinha? Como alguém que se sente ferido e traído pelos outros pode ser inocente?”

Refleti por um momento, queria muito fumar outro cigarro, mas ao tirar o maço do meu bolso vejo que está vazio, amasso-o e coloco de volta no bolso. “Qual o sentido da vida?”

“Como?”, ela se volta para mim um pouco surpresa pela minha pergunta que parecia não ter relação com o que acabara de falar, e de fato não era para ter relação, eu só não sabia o que dizer a respeito do que ela me disse, então decidi por mudar um pouco o rumo da conversa, afinal o objetivo era fazer com que ela NÃO pulasse.

“O sentido da vida”, repeti, “Qual o sentido da vida? Para você pelo menos.”

“Felicidade?”, respondeu um pouco insegura, pelo menos consegui atrair seu olhar de volta para mim.

“HAHAHA! De fato um otimista pensaria assim! Viu! Você não é tão pessimista como pensava. No entanto eu penso diferente. Acredito que não existe um sentido da vida, não acredito que a vida tenha um sentido, uma razão ou um motivo.”

“Então...”

“Então que acredito que a vida seja por si um todo; ela não precisa de sentido, nem motivo ou razão, ela existe por si e é o que importa. Vivo meus dias apenas por viver, faço o que penso ser o certo sem ferir ninguém e faço tudo que posso quanto posso, sem me importar com o tempo que tenho ou estou perdendo. Vivo para vida e penso que isso é o suficiente. Momentos ruins vão acontecer, vou chorar, vou me ferir. Mas também haverão momentos bons e felizes. Veja”, tirei de dentro do sobre-tudo a garrafa de champanhe que meu amigo havia dado pela manhã, “Um amigo de infância deu de presente para mim, é tradição, todo final de ano ganho um. Nunca abri nenhum deles, sempre os guardo, pois eles me recordam dos momentos felizes que passo com ele e a família dele. Por isso eu vivo, para presenciar todas essas coisas novas que a vida pode trazer, sejam elas boas ou ruins, eu sempre vou passar por elas da melhor maneira que puder.”

“É bom ter amigos não é?”, disse com uma voz triste, mas não chorava, talvez não houvesse mais lagrimas naquele corpinho frágil.

“Sim, isso posso afirmar, mas tenho poucos amigos, posso contar nos dedos”, estendi meu braço da direção dela apenas levantando o indicador. “Mas agora...”, e levantei mais um dedo resultando dois levantados, “...tenho mais uma”, e sorri para ela. Não sabia o por quê, mas de fato eu sentia como se ela fosse uma amiga muito próxima e importante para mim, mesmo nossa conversa tendo sido breve demais para se conhecer uma pessoa, eu me sentia confortável e confiante com ela, diferente de como me sentia com as outras pessoas.

Ao abaixar meu braço vejo ela corar. Ela se encolheu e por um momento me assustei pensando que ela iria escorregar, mas por sorte não aconteceu. Então ela sorriu, seus lábios finos e graciosos, seus olhos fechados brilhavam com os vestígios das lagrimas misturadas com a garoa, era um sorriso sincero, verdadeiro, inocente; foi a primeira vez que vi um sorriso como aquele, digno de um anjo, de uma deusa.

“Obrigada.”, virou-se e olhou para baixo, naquele momento meu coração parou, a adrenalina tomou meu corpo, o vazio de meu corpo apertou tudo que estava dentro dele de maneira que com uma única batida do coração, pareciam explodir todos meus órgãos, as pernas tremiam, as mãos estáticas, os olhos arregalados; era como se o espírito abandonasse o meu corpo de maneira tão abrupta, que ainda não tinha me dado conta de sua partida.

Ainda com um sorriso ela vira o rosto para em minha direção uma ultima vez.

“Gostaria que na próxima vida nos encontrasse, eu ficaria muito, muito feliz.” E pulou.

Corri para onde ela estava, estendi meu braço por pura reação do corpo, não tinha mais controle de nada, era como se eu estivesse vendo tudo do alto, como um espectador que não pode influenciar nos acontecimentos, mas foi tarde, não pude pega-lá. Vejo ela cair, no entanto não pude ver até o final, ela havia desaparecido antes de atingir o solo.

A adrenalina, a tontura de ter visto o chão do alto do prédio e a sensação febril que minhas roupas molhadas passavam me atingiram como uma pedra em minha nuca, o mundo girou de uma forma irregular, caído no chão olhava para o céu, já era noite, não podia ver as estrelas devido à poluição, só conseguia sentir a fina garoa caindo sobre meu rosto.

Desmaiei.


--Fim da Parte 2

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