segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

A Miopia e a Genética

- Assim está bom?

- Sim. Perfeito.

- E agora?

- Agora embaçou um pouco.

- Agora?

- Está bom.

Assim costumam se desenrolar minhas visitas ao oftalmologista. Continuo com olhos de lince míope: 4,0 e 4,5 no olho esquerdo e direito, respectivamente.

Enquanto o Dr. Miura preenchia as informações em seu computador, eu gastava meu tempo observando a paisagem de seu imenso consultório. Imaginava a função de tantos aparelhos e objetos, alguns pontudos até.

Para mim, ser oftalmologista é uma das profissões mais difíceis do mundo, quiçá da galáxia. É preciso deduzir, ter um feeling do paciente, quase um chute mesmo.

Imagine que, como de praxe, o Doutor peça para uma senhora sentar-se na cadeira situada no fundo do enorme consultório enquanto ele prepara o aparelho em seu rosto, ajeitando as lentes, o foco, as letrinhas iluminadas na parede em tamanho médio.

Então ele apaga a luz, faz um último ajuste no aparelho grudado no rosto da senhora e pergunta, já apontando para as letrinhas refletidas na parede:

- E então? Assim está bom?

- Sim. Não dói nada.

- Mas a Senhora consegue enxergar bem assim?

- Sim, consigo.

- A Senhora poderia ler para mim as letrinhas na parede?

- Que letrinhas?

- Aquelas refletidas na parede.

- Que parede?

Enfim, eu, com minha paciência de motorista paulistano, jamais conseguiria exercer o ofício de oftalmologista, nem por uma hora, nem para dilatar a pupila dos velinhos e crianças.

O Dr. Miura terminou de mexer no computador; anotou o grau de meus olhos em uma ficha, para que eu pudesse fazer meus novos óculos.

Quando já havia me levantado para sair, notei um porta-retrato com uma foto do Dr. Miura de shorts, óculos de mergulho, pé de pato, abraçado com uma mulher e três crianças em volta.

- São seus filhos?

- São sim.

- São bonitos. Puxaram à mãe né?

O Dr. Miura limitou-se a me conceder um sorriso de canto de lábio: o qual para os japoneses equivale a uma risada forçada ou educada que nós brasileiros tanto usamos.

- Mas enfim, pai é quem cria, não é mesmo? – Disse brincando enquanto esticava as mãos para cumprimentá-lo e me retirar.

- Não é não. – Respondeu o doutor me cumprimentado e sorrindo.

Acho que minha cara de espanto o obrigou a concluir o raciocínio.

- Embora possa parecer difícil de acreditar, na faculdade nós estudamos um pouco de psicologia. Aprendemos que: pai é quem gera a criança e não quem educa.

Larguei a mão do médico – oftalmologista é mesmo considerado médico? – Sequer tentei me defender da piada de mal gosto proferida por mim instantes atrás, balancei a cabeça levemente, como que processando a informação: não esperava tal resposta.

- O DNA marca a pessoa, como uma tatuagem. – prosseguiu entusiasmado o Doutor – Assim, a criança terá um vínculo eterno com o pai, o homem que a gerou.

Me sentei na cadeira de couro novamente, não tanto porque estava tão interessado no assunto, mas porque vi que o homem não iria parar a preleção tão cedo.

O Dr. Miura, com notável eloqüência, discorreu acerca da importância de se reconhecer aquele que deu início a tudo. Seja ele Deus, o pai, a pessoa que antes de você chegar ocupava seu cargo na empresa em que você trabalha, os portugueses que ocuparam o Brasil. Não importa se o resultado foi positivo ou negativo, mas aquele que nos antecede merece o mínimo de respeito.

Mesmo sentado em sua cadeira, o Doutor gesticulava e reiterava suas afirmações, dizia que o pai biológico é insubstituível e deve ser sempre respeitado; fazia inúmeras analogias para dissecar o assunto até este se esgotar em si mesmo.

Engraçado que de um momento para o outro aquele homem cujas únicas palavras tinha ouvido antes eram “E agora? Consegue enxergar?”, estava compartilhando seus conhecimentos de psicologia, metafísica e budismo.

Confesso que as palavras do Dr. Miura, me tocaram, senão não às colocaria, mesmo que de forma sintética e grosseira, nestas linhas tortas. Fiquei muito impressionado por ter o Dr. Miura falado ininterruptamente por trinta minutos, parando apenas para respirar: Primeiro porque não sabia que os japoneses davam discursos longos e segundo por confiar na minha capacidade de entendimento do assunto. Afinal, em momento algum fiz ou disse qualquer coisa que indicasse meu conhecimento acerca de qualquer tema.

Assim que ele terminou me levantei, cumprimentei-o novamente, evitei qualquer comentário que pudesse ocasionar um segundo round e saí. A sala de espera estava lotada. Creio que os que ali esperavam imaginaram que meu estado era grave, afinal, minha consulta deve ter demorado mais de uma hora. Devem ter se perguntado: Será que vai ter que arrancar os olhos? Usar olhos de vidro? Coisas do gênero.

Agora, toda vez que espero por muito tempo pelo atendimento de qualquer médico, imagino qual o tema em pauta na sala. Estará ele discutindo o sentido da vida, a importância das células-tronco, o governo Lula? E toda vez que o paciente sai da sala após longas consultas fito-o com olhar desconfiado e confuso: devo agradecê-lo por ter sido ele meu antecessor ou será que é daqueles que não enxergaram as letrinhas na parede?

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