domingo, 1 de fevereiro de 2009

Trevas da Luz - O Gato Perdido (PARTE 2)

Já era final da tarde quando entramos no apartamento. Nana começou a preparar o jantar com sua destreza sobrenatural enquanto eu sentei-me no sofá e vi as fichas de cada pessoa que estava na festa, sem saber exatamente o que procurava.

Abrindo elas aleatoriamente percebi que todos tinham a mesma faixa de idade, de dezesseis a dezoito anos, filhos ou filhas de pessoas da alta classe social, como advogados, juízes, presidentes, donos de negócios e coisas do gênero que abrangiam São Paulo e às vezes por todo território brasileiro, tinham até os de gênero internacional.

Pelas fichas terem sido feitas em cima do caso, muitas informações foram vagas e outras até reservadas. Por exemplo, um pai que é dono de um negócio multinacional, não mencionava nome da empresa ou que tipo de negocio era. Pensava haver algum padrão do tipo que a informação foi reservada somente pelos pais das garotas que morreram, porém isso se mostrou falso.

O cheiro da comida saía da cozinha e enchia a sala onde estava que era adjacente a ela. De todas as coisas, por mais trivial que pareça, o que mais me surpreendia sempre em Nana era sua habilidade na cozinha. Não me surpreendia quando ela sabia algo que eu estava pensando, ou eu alguém estivesse por vir, nem mesmo quando respondia alguma pergunta antes dela ser feita; mas quando se tratava do que ela fazia para comer, não conseguia deixar de me espantar com tamanha aptidão.

Deitei no sofá olhando para a mesa onde fazíamos as refeições, encostada na parede que dividia a cozinha da sala. Uma pilha de cadernos e livros em um canto.

Cadernos e livros. Tive um estalo e imediatamente liguei para o escritório da Ling. Após algumas chamadas caiu na secretária. Em seguida liguei par o celular que ela o atendeu quase de imediato.

– Ling Wei – anunciou ao atender.

– Masahiro.

– Oho – não pareceu tão surpresa em saber que era eu. – O que quer?

– A escola em que eles estudavam.

– Huh?

– Ninguém falou em que escola eles estudavam, todos eles – afirmei passando o olho pelas fichas abertas sobre a mesinha de centro. – Muitas informações também ficaram bastante obscuras aqui.

Houve uma pausa de alguns segundos do outro lado da linha, durante o silêncio pude ouvir alguns telefones tocarem e o murmúrio de várias pessoas. “Onde ela estará,” fiquei pensando nesse intervalo de tempo.

– Hummm... – começou depois de concluir sua reflexão. – Não é de se surpreender que, quem quer que fosse o responsável por preencher a ficha das testemunhas e vitimas, tivesse que omitir algumas coisas. Muitos têm medo de sua segurança, principalmente depois de ter a filha, ou amiga do filho, mortas em uma festa em um condomínio bastante seguro... – mais um momento de silêncio. – Pode ser que você tenha achado algo interessante. Por sorte estou com os investigadores aqui, vou ver com eles e já te informo.

Desligou antes que eu pudesse agradecer ou fazer qualquer comentário.

Nana serviu a janta e eu transitei do sofá para a cadeira na mesa de jantar, a mesma que estava antes de fazer a ligação.

– O que você acha? – perguntei para ela entre uma garfada e outra.

Ela levantou a cabeça e seu olhou direto em meus olhos, seus olhos verdes esmeraldas eram lindos, porém sem brilho ou profundidade que indicava qualquer sinal de visão. Não eram brancos ao contrário do que a maioria poderia pensar, o que deixava que ela andasse sem óculos escuros.

– Você está preocupado comigo?

– Sim... digo... Eu prometi que iria ajudar você...

Balançou a cabeça com um sorriso, pousou seu garfo e faca no prato, e depois colocou seus braços por baixo da mesa. Era seu costume de quando conversava com alguém, manter essa postura ereta com as mãos juntas sobre as coxas.

– E você está me ajudando – disse com uma voz tranqüila e amável. – Mesmo agora.

– Mas esse caso...

Balançou a cabeça mais uma vez me interrompendo, um sorriso se formou em seus lábios finos.

– Eu não me sentiria confortável em ver você deixar de ajudar os outros por minha causa, especialmente Ling Wei que nos ajudou tanto desde que nos conhecemos – colocou uma mecha de seus longos cabelos castanhos e lisos atrás da orelha. – E eu também acho que a cada passo que damos juntos, nós três, sinto estar um pouco mais perto de descobrir os responsáveis pela morte das pessoas do meu clã.

Soltei um suspiro e não pude deixar de sorrir para a força e a tranqüilidade que ela conseguia assumir, mesmo se tratando de seu passado violento.

Continuamos a jantar em silêncio enquanto do lado de fora, pela porta da sacada que permanecia aberta, os últimos raios de sol formavam uma penumbra dentro da sala dando um ar melancólico e nostálgico enquanto a olhava entre uma garfada e outra.

– Masahiro... – disse olhando para mim. – Obrigada.

Me espantei mas de imediato sorri.

– Hum.

O telefone tocou logo após a janta enquanto Nara retirava os pratos.

– É Ling – disse ela enquanto se levantava com os pratos e copos sobre eles.

Levantei-me e atendi o telefone.

– Novidades? – perguntei logo após colocar o fone na orelha.

– E como sabia que era eu? – respondeu com uma outra pergunta e logo completou. – Ah! Deixa pra lá... hihihi.

Pelo som abafado que fazia deduzi que ela já estava em seu escritório. Algo que não sabia sobe Ling era onde ela morava, sabia onde ficava seu escritório assim como sabia que dormia às vezes lá. Como se soubesse meus pensamentos ela continuou.

– Estou no escritório agora e gostaria que vocês dessem uma passada aqui.

– Estamos a caminho.

Quando ia desligar ouvi uma exclamação do outro lado da linha.

– Ah! E podem me trazer alguma coisa para jantar? Ainda não jantei.

– Erm... – e essa era a Ling, de um lado fria e séria, de outro cabeça-de-vento e animada. – Claro.

Coloquei o telefone no gancho e assim que me virei para a porta da cozinha Nana saiu com dois potes nas mãos sorrindo.

Suspirei e sorri também.

– Vamos para o escritório – disse indo pegar minhas coisas.


Nuvens escuras começaram a cobrir o céu de verão, uma fina garoa ameaçava se tornar uma forte tempestade assim que os brilhos de raios começavam a percorrer pelo céu. Pelo menos o tempo tinha esfriado um pouco e a jaqueta sobre o coldre de ombro não incomodava tanto quanto havia me incomodado durante a tarde de calor escaldante.

O escritório de Ling ficava em uma das quadras obscuras da avenida paulista. Ela havia comprado um pequeno prédio de três andares, tão velho que parecia estar presente desde a formação da região. O acesso ao prédio era feito por uma porta pequena e estreita ao lado de um bar sobre o qual os três andares superiores se sustentavam. Ling também havia comprado o bar e feito dele um estacionamento para seu carro que deveria ter custado mais que o prédio inteiro.

Subimos as escadas mal iluminadas até o primeiro andar onde ficava o escritório bagunçado e abarrotado de papeis, livros, pergaminhos e outras relíquias pelas quais um colecionador ou curador de um museu cortaria seus pulsos para tê-los.

– Oh! – exclamou assim que nos viu passar pela porta. – Jantar da Nana! Eu fui abençoada! – disse excitada ao ver os potes que eu carregava.

Após arranjar um milagroso espaço sobre sua mesa completamente bagunçada e abrir os potes sentindo a fragrância ainda quente do jantar de Nana, prosseguiu com aparência séria:

– Masahiro – começou levantando levemente o canto da boca, travessa – você realmente encontrou algo muito interessante aqui.

Não pronunciei palavra alguma esperando que ela continuasse.

– O colégio que eles estudavam realmente é o mesmo.

– E os investigadores não notaram isso? – perguntei atônito, era algo bastante óbvio de se ver.

– Notaram. No entanto pelo que me informaram, o próprio colégio barrou as investigações deles – revelou dando uma garfada. – É claro que eles não deixaram passar e exigiram que o colégio desse as informações, mas além da reitoria do colégio, seus superiores mesmos proibiram qualquer um envolvido no caso de envolver o colégio no meio – Nana serviu chá para Ling e sentou-se do meu lado da mesa. Ela conhecia o escritório quase tão bem quanto conhecia nosso apartamento. – Obrigada – voltou-se para mim. – É claro que os investigadores ficaram indignados, além de todas as vitimas e suspeitos serem alunos do mesmo colégio, as informações que eles queriam não era de forma alguma confidencial.

– E fizeram alguma coisa? – perguntei cruzando as pernas e acendendo um cigarro.

– Claro, tentaram encontrar outros meios de conseguir a informação, até que um os investigadores foi afastado do caso. Logo os outros pararam e seguiram outro caminho.

– Que caminho? – questionei mais por minha curiosidade.

– De que eles agora estavam literalmente sem nada e sem poder avançar por pressão de superiores. Do outro lado sofriam pressões dos pais para que prosseguissem com a investigação.

– Isso é estranho... – murmurei. Então tive um estalo. – Os pais de algumas das vitimas e dos suspeitos eram juízes. Eles não chegaram a interferir?

– Pelo contrário, Masahiro. Eles mesmos insistiram para que não envolvessem o colégio na investigação.

– Mas... por quê?

Ling suspirou dando sua ultima garfada e ela mesma acendendo um cigarro.

– Ninguém sabe o motivo – e após um trago. – Como você disse: estranho.

Ninguém falou por algum tempo. Não era algo somente estranho, era também completamente conflitante.

– No entanto... – Ling rompeu o silêncio com certa alegria em sua voz. – É de mim que estamos falando! – um sorriso misterioso se formou. – Conversei com algumas dessas pessoas que deram a ordem de que não deveriam envolver o colégio no meio dessa investigação.

– E?

– Nada.

Assim como no café em que estivemos à tarde, quase cai da cadeira. Vi ela sorrir, para minha felicidade estava escondendo algo.

– Por mais que insistisse, não queriam passar qualquer informação, chegaram até a me ameaçar de processo e prisão por me envolver em assunto policial sem autorização – deu de ombros. – Mas de uma coisa é certa: todos com quem comentei sobre o colégio ficaram bastante desconfortáveis.

– O colégio é suspeito então – minha voz ficou entre uma pergunta e afirmação.

– Não sei – respondeu com um sorriso largo apagando seu cigarro em um cinzeiro abarrotado de pontas. – E é ai que vocês dois entram.

Olhei para Nana, ela ficou apenas em silêncio esperando o que estava por vir.

– Segundo os investigadores, nenhum dos responsáveis pelo colégio liberou informações. Pra mim todos os lados estão com medo de alguma coisa.

– Medo? De que?

– Não faço idéia – olhou para Nana que pareceu perceber e acenar negativamente.

Cocei a cabeça, se nem ela sabia... olhei o cigarro que queimara até o filtro. Acendi outro.

– E o que você quer com nós?

– Nós três na realidade – disse. – Quero saber o que tem naquele colégio e tudo que eles têm sobre os alunos envolvidos.

Continuei ouvindo.

– Vou arranjar a papelada necessária para conseguirmos entrar.

– Lembrei de uma coisa... – falei antes que ela prosseguisse. – Que tipo de colégio estamos falando?

– Ah! É verdade, vocês não sabem – cruzou os braços encostando-se a sua cadeira de escritório. – É um colégio dos mais caros de São Paulo onde só a elite entra. Não apenas isso, mas o nível de ensino é bastante alto.

– Tudo bem... e precisamos da papelada por que?

– Seremos um casal vindo da Europa com uma importadora em extrema ascensão e queremos que nossa filha Nana estude lá.

A isso até Nana franziu a testa ao meu lado.

– Com certeza a diretora vai querer confirmar nosso histórico, então vou dar um jeito nisso. Pode deixar – disse com convicção. – Só vou precisar de alguns dias.

– Erm... – cocei a cabeça. Aquilo parecia um exagero de espionagem. – Por que não falamos com os dez sobreviventes? – ainda com a mão na cabeça a olhei transtornado pela idéia. – É menos invasivo – complementei o pensamento.

Desta vez foi Ling quem coçou a cabeça.

– Vai ser difícil se aproximar deles. Além dos seguranças, até mesmo a polícia deixou de interrogar eles.

– Por quê? Se eles não falam com os sobreviventes, que caso a policia tem?

– Exato – disse em um estalo. – Os investigadores praticamente desistiram, não sabem mais o que fazer. A comoção ficou entre os superiores da investigação, mas é como eu disse... esses não querem falar coisa alguma.

– Que complicação – murmurei massageando as têmporas. – Podemos tentar enquanto você consegue os documentos para entrarmos no colégio.

Ela pensou por um instante, mas foi Nana que disse.

– No entanto se conseguirmos falar com eles e depois visitarmos o colégio, pode ser arriscado que alguém nos reconheça.

– E com certeza o pessoal do colégio e todos que estão envolvidos no que quer que seja já devem estar mais alertas com todas as perguntas que andei fazendo – completou Ling concordando com acenos de cabeça.

Nana tinha razão. “Mas poderemos fazer isso depois se não descobrirmos nada no colégio.” Foi o que eu não disse, supostamente todos automaticamente pensaram nessa segunda possibilidade.

Ling agradeceu o jantar e disse que passaria a noite no escritório arranjando as coisas para a nossa pequena espionagem. A chuva começava a cair quando saímos.

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