quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Reprise - Parte 3 de 3

3ª PARTE

Ao abrir os olhos sabia exatamente o que veria. Sentia que já tinha passado por tudo isso. Tanto é que quando decidi, sem medo, abrir os olhos, os fogos de artifício me cumprimentaram sorridentes, explodindo no céu escuro coberto de nuvens. É ano novo em São Paulo, chove e isso não me incomoda nem um pouco. Fiquei deitado por um tempo antes de tentar entender se havia bebido, fumado ou qualquer coisa do gênero. Deixei que a chuva molhasse meu rosto por um bom tempo.

Eu podia pressentir o que aconteceria nos instantes seguintes, nos próximos dias; se por alguma razão foi-me concedida a oportunidade de reviver tudo, talvez seja melhor, pelo menos desta vez, agir de outra maneira.

Sempre fui um sujeito irritado. Desconfio que seja essa a simples razão de não me conformar facilmente com as coisas. É claro que há sempre uma maneira melhor de se lidar com o inesperado e com a vida. Eu optei por gritar, ofender e agredir. Culpo meus pais por isto.

Meu pai era italiano. Trabalhava das oito horas da manhã às dez da noite em sei lá o que. Nunca nos faltou comida, portanto, nunca quis saber qual seu ofício. Minha mãe era uma alemã afetuosa. Nunca vi meus pais brigando. Na verdade, não sei se deveria os culpar por qualquer coisa.

Sem mesmo tentar acabei levantando, uma força superior me ergueu e deixei que me arrastasse feito um fantoche. Me limitei a impedir uma queda direta ao chão apenas me apoiando nas paredes úmidas pela chuva.

O taxi, conforme previa, me esperava. Tentei ver o que havia ao meu redor, não conseguia; tudo permanecia embaçado. Tentei ver o número do carro, também sem sucesso. Quando entrei no veículo, aquele sujeito cujo rosto já sabia que jamais conseguiria identificar fitava-me no espelho. Mesmo sem que eu dissesse uma palavra, começou a dirigir.

Dentro do taxi era como se estivesse em um pequeno mundo, não tinha contato nenhum com o exterior, que era apenas uma nuvem coberta pela chuva e pelo vapor que tornava impossível ver qualquer coisa através da janela.

O motorista fitou-me pelo espelho, aproveitei para sorrir e dizer: “Boa noite. Como vai?”. Para minha surpresa este me respondeu com um sorriso.

- Feliz ano novo para o Senhor.

Novamente, outra olhada pelo espelho.

- Não sei para onde vou, não soube das o outras vezes. Mas ao invés de importunar-lhe com minhas fúteis indagações, me limitarei a desejar-lhe um maravilhoso ano.

Percebi que o taxista diria agora as palavras já quase decoradas por mim:

- O senhor parece estar cansado, porque não descansa um pouco?

Sorri, mas não fiquei zonzo, minha cabeça não doeu, não me senti mal, apenas adormeci.

Acordei em meu apartamento, largado em minha cama com a mesma roupa, que ainda estava ensopada, imaginei como seria se apenas ficasse deitado e não me levantasse, não fosse à sala. Quando ouvi o primeiro choro meu coração partiu, uma lágrima escorreu de meu rosto. Não queria levantar.

Porém, não teria opção; ergui-me sob meus pés e troquei de roupa. Respirei fundo e me dirigi à sala de estar. Vi o vulto de minha irmã ao lado do sofá, onde sentavam meus tios sérios, fumando. Não sei por que das outras vezes não consegui situá-los, mas desta vez pude ver onde cada um se encontrava. Seus rostos permaneciam esfumaçados.

A sensação de que havia morrido batia forte em meu peito; mesmo assim decidi que faria o meu melhor desta vez; pode ser que das outras vezes fosse um sonho, uma premonição.

Minha tia se aproximou. Abracei-a com vontade, com sentimento. Ela dizia: “Nós sentimos muito, meu querido. Sentimos tanto!”.

- Eu sei. Eu sei. Muito obrigado pelo apoio. Muito obrigado por tudo.

Assim que minha tia se afastou minha irmã se aproximou dizendo:

- Marcos, o Marcolito, faleceu. Foi um acidente de carro, horrível!

Abracei-a fortemente, de modo que abafei seu choro em meu peito. Acariciei seu cabelo, disse-lhe inúmeras vezes que tudo acabaria bem. Estava tudo bem.

Tenho inúmeras lembranças de meu irmão. Enquanto meu pai trabalhava era ele quem cuidava de mim, me ensinou tudo que sei. Há anos não o via. Ele morava no interior, tinha esposa, filhos, talvez um cachorro. Não sei. Afastei-me de minha família. Não agüentavam meu gênio forte.

A última vez que vi meu irmão foi quando me livrou de um problema na delegacia. Creio que fui pego dirigindo bêbado e foi ele quem pagou a fiança. Não me lembro.

Sinto tanto por não ter visto meu irmão, ter-me afastado de todos. Mas não sei se devo me culpar por tudo isto.

Estranhei o fato de não ter perdido os sentidos desta vez. Mas mesmo contra minha vontade peguei as chaves de casa, minha jaqueta e fui para a rua. Não podia me controlar. Flagrei-me andando pela cidade. Não sabia que horas eram, mas era escuro e estava muito nublado.

Ouvi Jorge me chamando, ignorei tal fato, continuei andando. Jorge chegou a gritar meu nome várias vezes, pedindo para que esperasse, mas não o fiz, continuei andando e este sumiu na neblina.

Enfim chegara o ponto que tanto esperei. Ouvi o assovio do trem, podia ouvir seu barulho, os quilos de metal em uma velocidade aparentemente incomensurável. Vinha me pegar.

Por razão alguma comecei a correr feito um louco. Estava leve como o ar. O assovio insistia em ressoar, avisava-me que estava a caminho. Meu coração começou a bater mais rápido, as lagrimas escorriam pelo meu rosto, mas meu coração estava leve, livre de remorsos.

Corria como o vento, o assovio se aproximava, o barulho da máquina anunciava o derradeiro encontro. Finalmente ele apareceu. Era do tamanho de um prédio de três andares, negro, o farol iluminava apenas meu corpo, como se eu fosse uma espécie de alvo.

Desperdicei todo ar que sobrava em meus pulmões com um grito que se misturou com o barulho do assovio do trem, abaixei a cabeça e o atropelei.

Não havia mais fogos de artifício, chuva, irmã, primos e primas, tios e tias. Não importavam mais os telefonemas, a secretaria eletrônica, fita com mensagens, parede, estilhaços, meu humor.

A única coisa que importa é o que restou, o assovio do trem.

Nenhum comentário: